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Rio São Francisco: dádiva agredida

Conhecido pelos indígenas antes da colonização como Opará (que significa rio-mar), o Rio São Francisco, popularmente chamado de Velho Chico, nasce na Serra da Canastra, em Minas Gerais, a cerca de 1.200 metros de altitude, atravessa o estado da Bahia, fazendo a divisa ao norte com Pernambuco, bem como constituindo a divisa natural dos estados de Sergipe e Alagoas. Por fim, deságua no Oceano Atlântico, na região nordeste do Brasil. Com 2.830 km de extensão, drena uma bacia de 641.000 km”. O ciclo natural de cheias e vazantes, altas e baixas, grandes e pequenas, fazia jus ao nome de um rio que tem declividade de apenas 7,4 cm por km (0,8 m/s), na maior parte de sua extensão (entre Pirapora, MG e Juazeiro, BA), devido à falha geológica conhecida por Depressão São-Franciscana.

O sustento de um povo

Nasce no rico Sudeste, em Minas Gerais e, ao contrário dos outros rios da região, corre para o empobrecido Nordeste, levando água e alimento. É o eixo, o centro, a artéria da vida do povo. Mas dia após dia cresce a degradação ambiental e social do Rio São Francisco e de seus afluentes. Os ribeirinhos lamentam as dificuldades crescentes em tirar das águas seu sustento: peixe escasso, vazantes menos produtivas, bancos de areia, navegação difícil, águas poluídas etc.

Dom Luiz Flávio Cappio, bispo da diocese de Barra, na Bahia, que fez duas greves de fome em defesa do São Francisco e contra o projeto de transposição, atesta que em um ano de peregrinação, em 1992, das nascentes à foz do Velho Chico, ficou evidente que os principais problemas da bacia são-franciscana são:

1) O desmatamento para as monoculturas e para as carvoarias que compromete os mananciais e provoca o assoreamento;
2) A poluição urbana, industrial, minerária e agrícola;
3) A irrigação, que além dos agrotóxicos, consome água demais;
4) As barragens e hidrelétricas que expulsam comunidades inteiras impedem os ciclos naturais do rio;
5) A pobreza e o abandono da população, a que mais sofre com as consequências desses abusos.

Para Dom Cappio, o Rio São Francisco é “a mãe e o pai de todo o povo, de onde tiram o peixe para comer, a água para beber e para molhar suas plantações – principalmente em suas ilhas e áreas de vazantes. Mesmo não sendo o maior rio brasileiro em volume d’água, talvez seja o mais importante, porque é a condição de vida da população. Sempre dizemos: Rio São Francisco vivo, povo vivo; Rio São Francisco doente e morto, população doente e morta”.

Sepultado vivo

Quem vive na beira do rio diz que ele está morrendo. Relatos como esses foram ouvidos, por exemplo, dia 1º de agosto de 2004, na 9ª Romaria da Terra e das Águas de Minas Gerais, em Pirapora e Buritizeiro. Pescadores que pescam na região há 15, 20, 30 ou 35 anos afirmam categoricamente: o Rio São Francisco está morrendo. Nos últimos 40 anos, ele já perdeu cerca de 40% do seu volume de água. Está cada vez mais raso, estreito e assoreado. Uma infinidade de ilhas existentes hoje não existiam no passado. O assoreamento é o resultado de 18 milhões de toneladas de areia e terra carreados anualmente para a calha do rio, até o reservatório de Sobradinho. O rio está sendo sepultado vivo. As matas ciliares acabaram. Os vazanteiros tiveram que migrar para as favelas, pois as cheias quase não existem mais e, por isso, a pesca e a agricultura nas várzeas estão ficando inviáveis.

Além de um milagre da natureza, o São Francisco é a maior bacia hidrográfica inteiramente brasileira, terceira do país, é um dos símbolos informais da nacionalidade, tido como o rio da unidade nacional, já que serviu de caminho entre o Norte, onde se iniciou o Brasil, e o Sul, onde o Brasil se centralizou.

O rio virou negócio

Não obstante tanta importância geográfica, histórica, cultural e política, o “ciclo do desenvolvimento”, propagado como modernização e implantado como modernização compulsória e conservadora, iniciado na segunda quadra do século 20, viu no Rio São Francisco, num primeiro momento, apenas fonte de eletricidade. Já são sete usinas hidrelétricas em sua calha, que desalojaram mais de 140 mil pessoas e produzem 10.356 megawatts de energia, comprometendo cerca de 80% de sua vazão.

A barragem de Sobradinho passou a ser o coração artificial do Velho Chico, e o que ela fez? Expulsou 72 mil ribeirinhos, inundou áreas férteis e artificializou o Baixo São Francisco. Várias outras barragens se anunciam… Depois, ao final da terceira quadra do século 20 acrescentou-se a irrigação de frutas para exportação e, mais recentemente, no limiar do século 21, para os novos negociantes da ecologia, irrigação de agrocombustíveis para exportação e perpetuação do modelo de civilização baseada nos carburantes. E suas águas, límpidas ou barrentas, contaminadas, como em setembro de 2007 por cianobactérias como nunca se viu, passaram a ser consideradas, por aparato legal inclusive (a Lei no 9.433/97) (1), recursos hídricos para todos os usos, inclusive econômicos intensivos em água. A consolidar o negócio da água, o hidronegócio que se junta ao eletro e ao agronegócio, iniciaram-se as obras do Projeto de Transposição ou, no eufemismo oficial, Integração de Bacias do São Francisco com as do Nordeste Setentrional.

Resultado dessa série de múltiplos, sobrepostos e indisciplinados usos, o Rio São Francisco, do qual dependem os 14 milhões de pessoas que são a população da Bacia, tornou-se um rio condenado, cuja revitalização, trabalho hercúleo de gerações, muito além do atual e pífio Programa de Revitalização do governo federal, dificilmente lhe devolverá a vitalidade e o vigor. Para poder propor ações revitalizadoras consistentes, eficazes e eficientes, por primeiro, é preciso analisar por que o São Francisco precisa de revitalização e quais as principais causas da degradação, da perda da vitalidade, que seriam, forçosamente, as frentes principais da revitalização, fosse para valer essa revitalização.

Até pouco tempo o rio era navegado sem maiores restrições entre Pirapora e Petrolina/Juazeiro (1.312 km), no médio curso, e entre Piranhas e a foz (208 km), no baixo curso. Hoje só apresenta navegação comercial no trecho compreendido entre os portos de Muquém do São Francisco (Ibotirama), na Bahia, e Petrolina/Juazeiro, na divisa entre Bahia e Pernambuco. Outro sinal alarmante da situação deplorável é a diminuição da sua vazão. Em 2001, o reservatório de Sobradinho chegou a 5% de sua capacidade.

Em outubro de 2007, aconteceu em proporções inéditas um desastre ecológico decorrente desta poluição e da diminuição da vazão: uma contaminação com algas azuis (cianobactérias) que se proliferaram no Rio das Velhas e no Médio São Francisco, levando a uma enorme mortandade de peixes e à inadequação da água para consumo humano e animal, enquanto não aumentasse o volume com a chegada das chuvas nas cabeceiras. A infestação é efeito de uma alta concentração de emissões de esgotos domésticos e industriais, de agroquímicos e fertilizantes usados nas lavouras, que resultam em uma eutrofização dos cursos d’água. O mais problemático é o Rio das Velhas que coleta a maior parte do esgoto da região metropolitana de Belo Horizonte e que, por isso, é um dos rios mais poluídos da Bacia do São Francisco. Essa contaminação com cianobactérias mostra que em épocas de poucas chuvas o rio não consegue mais diluir os poluentes.

Enfim, as principais causas de degradação do Rio São Francisco são o avanço descontrolado da agricultura intensiva de irrigação com superexploração dos mananciais, desmatamento do Cerrado, supressão da mata ciliar, produção de carvão vegetal, concentração de terra, barragens e hidrelétricas, mineração, siderurgia e a falta de saneamento básico na bacia.

Nota:

(1) Trata-se da Lei Nacional de Recursos Hídricos que estabelece as condições para o “negócio da água”, tornando-a bem econômico, sob controle da Agência Nacional de Águas (ANA) e co-gestão dos Comitês de Bacia.

(Artigo anexo ao texto “Velho Chico é mais que um rio”, Jornal Mundo Jovem, edição nº 395, abril de 2009, p. 4.)

Frei Gilvander Luiz Moreira