O bioma teve cerca de meio hectare desmatado por dia em 2020 devido, em grande parte, ao avanço acelerado da monocultura de grãos e da pecuária extensiva
O MapBiomas detectou 203 novos eventos de desmatamento por dia no país em 2020, fechando o ano com mais de 74 mil alertas – cerca de 10% deles em áreas de Cerrado. Ao dia, foram desmatados quase 3,8 mil hectares no país. Só o Cerrado perdeu mais de meio hectare por dia no ano passado, totalizando 432 mil hectares, o equivalente a 31% da área total desmatada no Brasil – 1.385,3 mil hectares.Nesse quesito, só perde para a Amazônia, que teve 843 mil hectares desmatados – quase 61% da área total desmatada no país em 2020.
Ainda que sua riqueza biológica seja reconhecida, o Cerrado corre sérios riscos. Ele tem apenas 8,3% de seu território legalmente protegido por unidades de conservação. Desse total, 3,1% são unidades de conservação de proteção integral e 5,2%, unidades de conservação de uso sustentável, segundo o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), e o Código Florestal (Lei nº 12.651/2012) prevê a preservação de apenas 20% a 35% do Cerrado em reservas legais (ou seja, parcela do bioma que os proprietários de terra precisam manter intacta).
Uma possível boa notícia é que o Fundo Nacional do Meio Ambiente, que até o momento prioriza a aplicação de investimentos em projetos ambientais na Amazônia Legal e no Pantanal mato-grossense, poderá receber uma alteração e incluir o Cerrado entre os biomas prioritários para captação de investimentos. No início de agosto de 2021, foi aprovado, na Comissão de Meio Ambiente do Senado, o Projeto de Lei nº 1.600/2019, de autoria do senador Jorge Kajuru (Podemos-GO). Agora o PL segue para apreciação na Câmara dos Deputados.
Devido ao avanço da agropecuária e a esse baixo percentual de proteção ambiental, temos visto uma acelerada degradação desse bioma, especialmente para pastagens e lavouras de grãos. Os indicadores ambientais do país divulgados pelo IBGE no catálogo Contas de ecossistemas: o uso da terra nos biomas brasileiros (2000-2018) mostram que a agricultura ocupou mais de 102 mil km² de área do Cerrado, com uma rápida e contínua expansão nos primeiros 18 anos deste século. Só para se ter uma ideia, em 2018, quase 45% das áreas agrícolas e mais de 42% das áreas de silvicultura brasileiras estavam no Cerrado.
Para o geógrafo Yuri Salmona, diretor executivo do Instituto Cerrados, “o Cerrado é, foi e está sendo desmatado para o uso pecuário, mais extensivamente para as pastagens, e para a monocultura em latifúndios, especialmente para exportação”.
Yuri Salmona – Divulgação
Ração vale mais que comida
Salmona também questiona a alta produtividade de commodities agrícolas (matéria-prima, produtos comercializados in natura ou com baixa industrialização, tais como: carne bovina, soja, algodão, milho), não só por seu potencial destrutivo, mas principalmente por seu pífio resultado para a segurança e a soberania alimentar dos brasileiros. Segundo ele, o potencial produtivo das áreas já ocupadas por pastagens está muito aquém do que poderia alcançar – e sustentavelmente.
Dados do Censo Agropecuário 2017-2018 do IBGE mostram que praticamente 77% dos mais de cinco milhões de estabelecimentos rurais brasileiros são da agricultura familiar e a maior parte dos alimentos que consumimos cotidianamente, em especial as hortaliças e os legumes, vem desses produtores.
“Estamos muito aquém do potencial produtivo das áreas já ocupadas por pastagens e uma grande parte da nossa área é ocupada pela agricultura extensiva, para produção basicamente de commodities agrícolas que, muitas vezes, são utilizadas para ração e não para alimentação humana. Quem realmente produz os alimentos que consumimos é a agricultura familiar que faz isso tradicionalmente com baixíssimo desmatamento”, explica Salmona.
“A agricultura no Brasil é muito heterogênea. Como o Brasil é. Então você tem de tudo. Você tem os melhores exemplos e os piores exemplos, mas a média está muito longe de uma agricultura moderna.”
Yuri Salmona
Potencial agroextrativista inexplorado
O Cerrado tem um grande potencial agroextrativista praticamente desconhecido e inexplorado. São mais de 330 mil espécies de plantas e animais – mais de 12 mil só de plantas, segundo Salmona. “Quando a gente vai no supermercado, vai comprar frutas europeias e asiáticas. A gente compra banana, maçã. Nada contra essas frutas, mas quais as frutas do Cerrado que você come na rotina de segunda a sexta? Nenhuma!”, questiona.
Para o geógrafo, a agropecuária brasileira deveria ocupar apenas áreas já desmatadas e comprometer-se com o potencial produtivo da terra. Os produtores deveriam ter mais auxílio tecnológico a fim de utilizar técnicas mais sustentáveis em suas lavouras e explorar melhor os potenciais produtivos locais já ocupados: “Por que a gente consome fruta-do-conde e não araticum? Coma as frutas do país”.
Outra opção apontada por Salmona como ideal é repensar os tipos de manejo e passar a utilizar a agrofloresta, por exemplo, um sistema de plantio sustentável, inspirado na dinâmica dos ecossistemas naturais e, por isso, capaz de recuperar o solo e a vegetação de pastagens degradadas, por exemplo.
“A gente tem muito para aprender com as comunidades tradicionais, com a agrofloresta e com aqueles agricultores que estão conseguindo manejar pragas de forma orgânica, com menos agrotóxicos ou com agrotóxicos que tenham baixo impacto.”
Floresta invertida Os impactos ambientais no Cerrado começaram no século XVIII, com o ciclo de exploração mineral – garimpos que contaminaram rios com mercúrio e provocaram assoreamento dos cursos de água – e com a pecuária, que provocou desmatamento para as pastagens. Entre os anos 1940 e 1960, as políticas de ocupação de Goiás e a construção de Brasília consolidaram o processo de ocupação com o avanço acelerado do povoamento.
A partir da década de 1970, intensificou-se sobremaneira a devastação desse bioma com a acelerada abertura da fronteira agrícola. Atualmente, o Brasil é um dos principais produtores mundiais de commoditiesagrícolas. Contudo, essa posição na economia global tem gerado aumento da degradação e do desastre climático que estamos vivendo.
Uma das características mais interessantes do Cerrado é sua vegetação: curvilínea, de diferentes extratos, das mais baixas às mais altas e com grande parte da biomassa nas raízes. Como o clima nesse bioma apresenta períodos de chuva e de seca bem definidos – sendo este mais longo – e está em solos bem drenados e profundos, essa floresta invertida funciona como um grande reservatório de água e abastece o bioma nos longos períodos de seca.
Embora ocupe 25% do território brasileiro, seja considerado a formação savânica mais biodiversa do mundo e a segunda maior região biogeográfica da América do Sul, e apresentar um imenso potencial ecossistêmico, o Cerrado ainda não tem a devida atenção e proteção governamental para preservação de sua rica biodiversidade. “A agricultura e a pecuária feitas sem planejamento, numa escala desproporcional, que não leva em consideração o papel do Cerrado para a manutenção dos recursos hídricos, aumenta a insegurança alimentar.
A monocultura intensiva desordenada, como a soja irrigada, aumenta a insegurança alimentar. Percebe? Acaba fragilizando o ciclo hidrológico, a segurança hídrica e a segurança energética. Você está vivendo isso. Eu estou vivendo isso”, conclui Yuri Salmona.