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Afinal, existe linguagem neutra?

Entenda que significados têm sido atribuídos ao termo por especialistas e por não especialistas

Existe linguagem neutra? Quando falamos de linguagem neutra, do que estamos falando exatamente? São mudanças linguísticas para identificar pessoas não binárias? É sinal de uma profunda mudança cultural e social em curso? Ou as duas coisas? A gramática está sendo destruída? A heterossexualidade será exterminada? Ou há algo implícito que provoca ataques à adoção de tal linguagem?

Para começar a refletir sobre essas questões, é importante compreender que os significados das palavras são socioculturalmente atribuídos, portanto elas devem ser consideradas contextualmente.

Como reflexo das lutas feministas e LGBTQIAPN+*, as palavras “sexo” e “gênero”, por exemplo, vêm assumindo significados diferentes nas sociedades contemporâneas. Assim como os termos “neutra” e “inclusiva”, usados para adjetivar o substantivo “linguagem”.

Isso mostra que linguagem e sociedade estão intimamente relacionadas. As modificações de ambas se retroalimentam. Portanto, o debate sobre linguagem neutra não é uma questão apenas linguística ou apenas social, mas uma associação sociolinguística atravessada por ideologias.

As resistências e os ataques à linguagem neutra são consequências do desconhecimento, do preconceito e do conservadorismo de grupos que não aceitam determinadas formas linguísticas, mas, sobretudo, não aceitam e não pretendem legitimar as pessoas diferentes.

Considerando-se, então, as diferenças contextuais – históricas, sociais, culturais, econômicas – e linguísticas que caracterizam cada sociedade, as discussões sobre linguagem neutra são complexas, transversais e plurais.

Também não se restringem ao Brasil e envolvem conhecimentos de muitas áreas, sob vários pontos de vista. Alguns deles serão apresentados nesta terceira matéria da série Todos os Gêneros.

Abaixo o binarismo

O termo “linguagem neutra” vem sendo amplamente difundido pela própria comunidade LGBTQIAPN+ para se referir a recursos linguísticos que identificam explicitamente as pessoas não binárias.

A estratégia é não só evitar o binarismo linguístico (masculino e feminino), mas também questionar a ideia de um masculino genérico, entendido por muitos como sinal de discriminação e negação da diversidade humana e cultural que se reflete na língua.

O debate é consequência direta da maior presença, na atualidade, de pessoas não binárias em espaços públicos e de poder. Com isso, têm crescido a visibilidade e as reivindicações de direitos e de uma linguagem que as represente e as legitime.

Nessa discussão, é muito importante entender que não se trata de autorizar ou proibir expressões sexistas, racistas e capacitistas. Nem de alterar morfologia, semântica e sintaxe para atender um grupo e discriminar outro.

Língua e sociedade entrelaçadas

Quando interagimos, não estamos apenas trocando informações, mas expressando identidades. Pela língua, comunicamos quem somos e quem não somos. De um ponto de vista científico, o linguístico e o social estão entrelaçados.

Sendo assim, é por meio da linguagem que simbolizamos e atribuímos significado, interpretamos e compreendemos o mundo e nós mesmos. Sem a linguagem, nós nos vemos incapacitados de compreender, portanto de agir sobre a realidade.

A youtuber e filósofa Rita von Hunty afirma, em seu canal Tempero Drag,  que “entramos no mundo com o mundo já acontecendo, nossa existência, portanto, é mediada pela linguagem”. E ela cita a obra A situação do romance, do escritor argentino Júlio Cortázar (1914-1984), em que ele escreve que o empreendimento da palavra é se lançar sobre novas realidades.

Isso quer dizer que as línguas não são imutáveis, mas acompanham as mudanças sociais e culturais. Também podem ser elemento propulsor de transformações ou de reforço de preconceitos e opressões.

Deborah Cameron

Crédito: Reprodução site.

“A língua não funciona no vácuo”

No artigo “What has gender got to do with sex?” (“O que gênero tem a ver com sexo?”), de 1985, a sociolinguista britânica Deborah Cameron (1958-) afirma que a língua é uma “instituição social profundamente implicada na cultura, na sociedade, nas relações políticas em todos os níveis”.

Em entrevista ao Metrópoles, a sociolinguista e professora da Universidade Federal de Sergipe (UFS) Raquel Freitag complementa: “surge algo novo na língua porque ela tem uma relação muito direta com a sociedade. Então, mudanças na sociedade levam a mudanças na língua”.

Segundo o linguista e professor titular da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) Sírio Possenti, “a língua não funciona no vácuo”, por isso não é possível ignorar formas discriminatórias presentes na língua. Em uma entrevista à TV Unicamp, ele pontuou que formas linguísticas depreciativas das mulheres, por exemplo, são usadas com o objetivo de discriminá-las e de minimizar a atuação e os papeis sociais delas.

“Patrão, no dicionário, designa homens que são donos de empresas e patroa, a mulher do patrão ou a dona de casa. Homem público é alguém que dedica seus esforços à sociedade, um político, por exemplo, e mulher pública significa prostituta.”

Sírio Possenti

Sírio Possenti

Crédito: Reprodução Facebook.

Outra situação a ser observada é a provocada pela lei de cotas. Essa lei tem alterado substancialmente a composição da intelectualidade brasileira. A entrada de grupos diversificados nas universidades tem contribuído para o estudo de questões antigas, ou novas, a partir de outros pontos de vista e de outras experiências.

Essa mudança de configuração também tem colocado em xeque o racismo e, consequentemente, os reflexos dele no léxico. Expressões como “escravo”, “lista negra”, “ovelha negra”, “serviço de preto”, “inveja branca”, “cabelo ruim” e “nasceu com um pé na cozinha”, bem conhecidas dos brasileiros, são exemplos de como o racismo está entranhado em nossa sociedade.

Então, pautas como a linguagem inclusiva e a neutra surgem como efeito de novas configurações e demandas sociais. Em sociedades profundamente marcadas pelo sexismo e pelo racismo, como a brasileira, a presença cada vez maior de pessoas de grupos minorizados em locais e papeis dominados por homens brancos cis heteros vai se refletir na língua.

Neutralidade almejada

Se a língua e a sociedade estão estreitamente relacionadas e mudanças em uma certamente afetam a outra, não existe linguagem “neutra”, simplesmente porque neutralidade implica imparcialidade, o que também não existe.

“Linguagem neutra é uma coisa que não existe. Não existe neutralidade, em nada no mundo.”

Raquel Freitag

Raquel Freitag

Crédito: Reprodução Facebook.

Escolher usar “todas e todos”, ou “todos”, ou “todas, todos e todes”, conscientemente ou não, projeta a identidade e revela a visão de mundo de quem está interagindo. Essa escolha, por si só, indica que não há neutralidade no uso da língua.

Embora haja muitas campanhas publicitárias e vários manuais de comunicação institucional prevendo o uso de recursos linguísticos mais inclusivos, a efetivação dessa prática não é generalizada nas companhias, porque o capitalismo se apropriou do discurso inclusivo, mas não das práticas inclusivas. E isso está longe de ser neutro.

O ideal é equilibrar as escolhas linguísticas com a cultura institucional de maneira transparente para alcançar práticas realmente inclusivas e não discriminatórias. Ainda assim, essas escolhas nunca são neutras.

Isso não quer dizer que se deve assumir uma postura normativa e determinar, por força de lei, o uso ou não de determinada forma linguística, como têm feito muitos parlamentares brasileiros.

Também não constitui afronta ao movimento em prol da linguagem neutra, mas uma reflexão pertinente e ancorada em questões linguísticas, sociais e políticas, que envolve a busca por justiça e igualdade para todas as pessoas e que tem gerado questionamentos sobre que neutralidade almejamos.

Construindo significados

A discussão sobre linguagem neutra também tem trazido à tona termos como linguagem inclusiva, linguagem não sexista, linguagem não binária, sexismo linguístico. Apesar de ter conceitos distintos, muitas vezes esses termos são compreendidos como semelhantes.

Considerando que a linguagem neutra promove a visibilidade, a representatividade e o respeito à identidade de pessoas não binárias – grupo socialmente marginalizado – e questiona tanto o binarismo linguístico quanto o masculino genérico, ela é também não sexista e não binária.

Essas características permitem incluir o tema no rol de estudos sobre sexismo linguístico, isto é, sobre se e como uma língua reforça desigualdades de gênero em sociedades em que vigora o padrão cis heteronormativo.

Além disso, a linguagem neutra é inclusiva, no sentido de que certas formas linguísticas identificam e incluem, portanto legitimam, pessoas não binárias.

Um exemplo é o uso do “todas, todos e todes” nos discursos oficiais do novo Governo Lula para contemplar cidadãos binários e não binários.

Inclusão pela linguagem

A inclusão pela linguagem é muito importante para o alcance da igualdade de gênero. Mas não só. Grupos minorizados, como as pessoas com deficiência (PCD), por exemplo, têm direito de interagir efetivamente com outras pessoas e de levar uma vida sem sofrer capacitismo.

Segundo a Organização das Nações Unidas (ONU), há cerca de 1 bilhão de pessoas com deficiência no mundo e 17 milhões no Brasil.

Então, a linguagem inclusiva é entendida como uma forma de não excluir, de combater preconceitos e de dar visibilidade a grupos minorizados, como mulheres, LGBTQIAPN+, PCD, indígenas, negros e outros.

Crianças com deficiência, epilepsia ou autismo, por exemplo, são comumente chamadas de “excepcionais”, “especiais”, “deficientes”, “doentes mentais”, “epiléticas”, “alienadas”. Muitas vezes pelos próprios familiares. E essas expressões depreciam e deslegitimam a existência de pessoas que são diferentes de padrões estabelecidos socialmente.

Palavras como “mongoloide”, “leproso” e “aidético” também são consideradas pejorativas e devem ser banidas do vocabulário. Inclusive existe a Lei nº 9.010/1995 para proibir o uso de termos como lepra e leproso em documentos oficiais.

Em vez dessas expressões, use pessoa com síndrome de Down ou pessoa Down, pessoa com hanseníase ou doente de hanseníase, pessoa com Aids (que desenvolveu a doença) e pessoa vivendo com HIV (infectada sem desenvolver a doença).

Evitar expressões pejorativas, preconceituosas e ofensivas a pessoas ou grupos de pessoas é uma postura democrática e respeitosa, mas, acima de qualquer coisa, a inclusão tem de ser efetiva na vida em sociedade.

Direito de existir perante a sociedade

Os linguistas estão longe do consenso e de respostas definitivas a respeito da linguagem neutra. Também consideram legítimos as ponderações e os questionamentos feitos por leigos, pois ninguém é proprietário da língua.

A conquista de direitos e de espaços políticos por pessoas com deficiência, mulheres, pessoas não binárias, negros, indígenas e outros grupos, que estão no campo social, são fundamentais para suscitar esse debate.

Também não se trata do politicamente correto ou de simples imposição de um pequeno grupo de cidadãos para destruir a heteronormatividade e a norma padrão da língua.

Não é uma questão puramente linguística. Também não é apenas um movimento social disputando espaço e poder. São cidadãos reivindicando, devidamente, o direito de existir perante a sociedade.

Na próxima semana, a última matéria da série Todos os Gêneros vai tratar de gênero neutro e de se e como a proposta de linguagem neutra tem afetado, além do léxico, como mostrado aqui, a estrutura da língua.

Série Todos os Gêneros. Primeira matéria. Segunda matéria. Quarta e última matéria na próxima sexta-feira (10/2).

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Caroline Cardoso – Comunicação FVHD, jornalista, doutora e mestra em Linguística, licenciada e bacharela em Letras.

 É permitida a reprodução, desde que citada a fonte.

 *LGBTQIAPN+ é a sigla de Lésbicas; Gay; Bissexuais; Transexuais e Travestis; Queer (questionando); Intersexo; Assexuais, Arromânticas e Agênero; Pansexuais e Polissexuais; Não binárias e mais.