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Dia da Consciência Negra: por uma educação antirracista

O persistente imaginário do Brasil como democracia racial nos aponta a urgência e a necessidade de uma educação antirracista

Duas frases marcaram bastante o início da minha jornada de aprendizado antirracista. A primeira foi da maravilhosa feminista, professora e filósofa estadunidense Angela Davis – “Numa sociedade racista, não basta não ser racista, é preciso ser antirracista”. Depois, ouvi que “se eu te amo, tenho que te tornar consciente das coisas que você não vê”, do escritor norte-americano James Baldwin. Mas o que é ser antirracista? O que é “te tornar consciente das coisas que você não vê”?

O antirracismo é um processo ativo e contínuo de identificação e eliminação do racismo por meio da transformação de sistemas e estruturas políticas, educacionais, culturais e da mudança de práticas, comportamentos e atitudes que disseminam a desigualdade racial e impedem a redistribuição e o compartilhamento equitativo dos poderes, dos direitos e dos deveres em uma sociedade.

Uma das principais formas de se construir uma sociedade antirracista é por meio da educação. E como ser um educador antirracista? Conversei com o professor André Lúcio Bento, 46 anos, doutor em Linguística e especialista em cultura afro-brasileira e africana, sobre como ele tem efetivado a prática educativa antirracista.

Para ele, o primeiro passo é reconhecer que o racismo existe no Brasil e é um problema estrutural da sociedade, não uma questão individual: “O racismo é uma ideologia perversa que tem efeitos reais na violência e na falta de democracia, de oportunidades. Como ideologia, é algo que se ensina. Nesse caso, cabe à escola ensinar os estudantes a desaprenderem o racismo”.

Além de ter estudado a escravização e a alforria de crianças na Cidade de Goiás entre os anos de 1755 e 1845, Bento lançou, em setembro deste ano, um livro infantil com a temática antirracista – Tâmara e Tamarindo na terra das coisas e das pessoas doces (Telha, 2021) – e tem realizado um trabalho de plantio e de mapeamento de baobás no Distrito Federal.

Confira a entrevista na íntegra.

É comum ouvir que a educação é um elemento chave para o combate ao racismo estrutural. A Lei nº 10.639/2003 é um exemplo desse combate? Por quê?

O racismo é uma ideologia perversa que tem efeitos reais na violência e na falta de democracia, de oportunidades. Como ideologia, é algo que se ensina. Nesse caso, cabe à escola ensinar os estudantes a desaprenderem o racismo.

“O que a escola ensina sobre a literatura, o teatro e o cinema de África? Nada ou quase nada. É como se lá não se produzissem arte e cultura.”

Como a história e a cultura africana e afro-brasileira têm sido trabalhadas nas escolas brasileiras?

De forma ainda muito oscilante. Temos, em alguns casos, projetos consistentes que percorrem todo o ano letivo e, por outro lado, temos algumas experiências apenas pontuais, apenas durante o mês de novembro. De todo modo, percebo muitos avanços. Não é fácil trabalhar essas questões nas escolas, uma vez que não fomos formados para isso. Os currículos das licenciaturas, de um modo geral, ainda hesitam em considerar o passado escravista em que se fundou a nação brasileira. Considero que não se tem a dimensão do que isso representa. Isso vale para o tratamento dado às questões indígenas também. A prova disso é que foram necessárias previsões legais que nos obrigassem a levar em conta o nosso passado. Os currículos são coloniais, em sua maioria. O que a escola ensina sobre a literatura, o teatro e o cinema de África? Nada ou quase nada. É como se lá não se produzissem arte e cultura. Contudo, não existe timidez para mostrar o continente africano como a terra das coisas exóticas, da pobreza, da violência e da falta de infraestrutura. Essa escolha tem fundo racista.

O que é preciso para ser um professor antirracista?

Primeiro, é preciso entender que o racismo existe. Muita gente acredita, ainda, que somos o maior exemplo de democracia racial do mundo. Fecham os olhos para as estatísticas, para a ausência de artistas negros na TV, no cinema e no teatro, para a escassez de jornalistas negros nas editorias, entre outros. É como se tudo isso fosse produto da natureza.

Tâmara

Ilustração: Bruna Hermínio.

Quando e como você criou as personagens Tâmara e Tamarindo? Em quem ou em que se inspirou para criá-los?

A primeira versão do livro foi escrita em 2015. Era para ser um conto de fadas, tanto que o título seria Tâmara e Tamarindo no reino das coisas e das pessoas doces. Tâmara seria uma princesa inconformada por viver em um mundo em que tudo era doce. Eu gostava da ideia de criar um mundo mágico, mas a estruturação narrativa do conto não me agradava muito. Também não estava gostando dos diálogos. Eles estavam didáticos demais. Depois de seis anos, voltei ao texto e optei por uma estruturação textual mais simples e fluida. Eu não tive uma inspiração específica em alguma coisa ou alguém. Eu me prendi mais a conceitos. E decidi, então, tratar de diversidade por meio de metáforas e alegorias.

Tamarindo

Ilustração: Bruna Hermínio.

Por que você escolheu duas frutas para protagonizarem sua história?

A opção foi pela metáfora dos sabores para tratar da heterogeneidade da vida. Das misturas. Não há vida real numa perspectiva de total homogeneidade. Isso é uma ilusão perigosa sobre a qual se fundam os preconceitos. Também optei por trazer uma representação de personagens negros. Por isso, a escolha por duas frutas de tons escuros e de origem africana. Eu não explicitei essa questão no livro para não incorrer em certos didatismos. Entretanto, essas e outras referências, explícitas ou não, estão lá. Por fim, quis trazer personagens negros como protagonistas de um mundo mágico para não reproduzir representações estereotipadas do negro apenas em situações de violência e subalternidade.

Qual foi sua intenção ao criar a terra das coisas e das pessoas doces para cenário da história?

Eu gosto muito de alegorias. Acho que as crianças gostam também (risos). De uma terra imaginária de um único sabor, terra de coisas homogêneas, eu parto para criar o enredo em que as misturas surgem como condição para a vida e para tudo no mundo.

Professor André Bento plantando um baobá com as crianças da Escola Classe Córrego Barreiro, no Gama, Distrito Federal

Fonte: Divulgação. 

“Registrar os baobás em Brasília, capital do país com a maior população negra fora da África, é algo muito relevante, pois, para mim, significa uma conexão e uma reconexão permanente com o continente berço.”

Como, quando e por que você começou o mapeamento dos baobás no Distrito Federal? Esse mapeamento é feito apenas no DF? Quantos baobás você já mapeou?

O mapeamento dos baobás teve início em 6 de novembro de 2020, dia em que eu soube de dois exemplares no Jardim Botânico de Brasília. Até então, eu acreditava que os dois únicos exemplares existentes aqui eram os dois que tinham sido plantados nos limites da escola de formação continuada no dia 20 de novembro de 2019. Esse plantio foi sugerido por mim quando exerci o cargo de subsecretário de formação continuada da Secretaria de Estado de Educação do Distrito Federal. Depois da descoberta dos dois baobás do Jardim Botânico, eu comecei minha busca curiosa e afetiva pelas longevas árvores africanas no DF.

Por que o baobá? Qual o significado dessa árvore milenar?

Os baobás (imbondeiros, embondeiros, mincondós, calabaceiras…) são árvores muito significativas para os povos tradicionais africanos. São importantes em termos culturais, sociais e religiosos. Chega a ser uma divindade para certas linhagens religiosas em África. Os baobás chegaram ao Brasil em forma de sementes ainda nos navios negreiros, como marcas da diáspora africana. O Brasil é o território com a maior concentração de baobás sem contar os países africanos. Isso tem relação com o fato de termos sido o maior destino do comércio e do tráfico de pessoas negras escravizadas. Fomos o paradeiro de quase 50% de toda a diáspora. Também fomos a última nação a colocar um fim, pelo menos em termos legais, ao regime de escravização negra. Então, registrar os baobás em Brasília, capital do país com a maior população negra fora da África, é algo muito relevante, pois, para mim, significa uma conexão e uma reconexão permanente com o continente berço.

Para conhecer o trabalho do professor André Bento

Capa:Divulgação

Tâmara e Tamarindo na terra das coisas e das pessoas doces, de André Lúcio Bento

Ilustrações: Bruna Hermínio

Editora: Telha

Lançamento: 8 de setembro de 2021

Sinopse: Os tachos de doce fazem doces, contam histórias e criam coisas mágicas. A terra das coisas e das pessoas doces nasceu das mexidas de uma colher de pau em um tacho de doce. Alguns dizem que isso foi há muito tempo. Alguns dizem que isso nunca foi. À venda no site da editora.

Site Baobá Brasil que reúne fotografias, artigos científicos, reportagens e outros produtos sobre essa árvore maravilhosa. Visite a galeria de fotos e vídeos.