A Fundação Verde resgata o importante legado de Herbert Daniel para a luta contra HIV e Aids no Brasil.
Neste 1º de dezembro, Dia Mundial de Luta contra a Aids, a Fundação Verde resgata o importante legado de Herbert Daniel para a luta contra o vírus da imunodeficiência humana (HIV) e a síndrome da imunodeficiência adquirida (Sida em português; Aids em inglês) no Brasil. Seu ativismo em prol da democracia, dos direitos humanos, do meio ambiente e pelo fim do preconceito contra pessoas vivendo com HIV/Aids foi fundamental para o atual estágio de informação, prevenção, acolhimento e tratamento em que se encontra nosso país no tocante à infecção pelo vírus e à síndrome.
HIV é um vírus e a Aids é um estágio de adoecimento devido à ação desse vírus no sistema imunológico. Esse adoecimento é provocado pela Aids, que não é uma doença em si, mas uma síndrome que facilita o desenvolvimento de doenças como tuberculose, pneumonia e outras, o que varia de pessoa para pessoa. Nos dias atuais, o tratamento causa efeitos colaterais menos agressivos que há 15, 20 anos.
Se o vírus é detectado precocemente, inicia-se o tratamento e as chances de levar uma vida normal são altíssimas em relação ao início da epidemia na década de 1980. Já existem testes mais acessíveis, tratamento integral no Sistema Único de Saúde (SUS) e exames específicos para identificar a melhor terapia para cada pessoa.
Independentemente disso, é muito importante haver apoio psicológico e acolhimento. As pessoas que vivem com HIV/Aids sempre enfrentaram uma série de desafios. Hoje, 40 anos após o descobrimento da Aids, esses desafios ainda existem – em menor escala, é verdade, mas estão aí.
O primeiro deles é justamente conseguir lidar com a notícia. Depois, com o preconceito devido à ignorância em relação ao vírus e à síndrome. O desconhecimento generalizado da população sobre prevenção, direitos, tratamentos e testes também inflaciona a discriminação. Por fim, a dificuldade de conseguir emprego e de se relacionar com familiares e amigos, em especial se a pessoa resolve falar abertamente sobre sua sorologia, permanece no horizonte daqueles que se descobrem infectados.
Diante dessas dificuldades, em 1987, a Assembleia Mundial de Saúde, com o apoio da Organização das Nações Unidas, instituiu o dia 1º de dezembro como Dia Mundial de Luta contra a Aids para marcar a incansável busca por solidariedade, tolerância, compaixão, compreensão, acolhimento e apoio a pessoas vivendo com HIV/Aids.
O símbolo da campanha mundial desde 1991 é um laço vermelho, que remete ao sangue e à paixão, segundo seu criador, Frank Moore. Ele simboliza a solidariedade e o comprometimento com o combate ao vírus e à síndrome.
Início do enfrentamento no Brasil
Uma das primeiras ações de Herbert Daniel ao descobrir que estava infectado com HIV foi idealizar e criar, em maio de 1989, no Rio de Janeiro, o Grupo Pela Valorização, integração e dignidade do doente de Aids (GPV), a primeira instituição do Brasil fundada por pessoas vivendo com HIV/Aids.
Nessa época, Herbert Daniel era membro da Associação Brasileira Interdisciplinar de Aids (Abia), da qual havia sido um dos cofundadores em 1986, ao lado de Herbert de Souza, o Betinho, e outros ativistas.
Era o início da epidemia de Aids. Herbert Daniel conheceu a recém-formada infectologista Márcia Rachid em alguma das palestras dela e a convidou para trabalhar com ele. Ela aceitou e cofundaram o GPV com outros ativistas.
Marcia Rachid Foto: Marcelo de Jesus/O Globo
Ela conta que trabalhavam bastante, porque o grupo era muito envolvido, participava de eventos; muitas vezes, iam para as ruas do Rio fazer testagens nas pessoas; faziam palestras em empresas, universidades, hospitais.
Os dois firmaram uma parceria importantíssima: nas palestras, ela falava da parte técnica e ele, da experiência de ser uma pessoa vivendo com Aids. Isso foi extremamente inovador naquela época. O GPV, liderado pelo Herbert Daniel, foi uma das maiores contribuições no Brasil e no mundo para o enfrentamento de HIV/Aids.
Segundo a infectologista, Herbert Daniel sempre foi o “grande portador da voz das pessoas que não tinham voz, porque pouquíssimas pessoas falavam sobre viver com HIV. Nem se falava esse termo. Era ‘eu tenho HIV’ ou ele falava ‘eu tenho Aids’”.
Rachid trabalha com HIV desde 1984, quando o vírus e a síndrome ainda eram muito pouco conhecidos. Esses 37 anos de experiência renderam o livro Sentença de vida: histórias e lembranças – a jornada de uma médica contra o vírus que mudou o mundo (Máquina de Livros, 2020), lançado no ano passado. “É um livro de histórias reais, de situações que eu vivi. Então tem histórias de pacientes, tem histórias do ambulatório onde eu trabalhava. São histórias do dia a dia. É para quem quiser ler. É um livro para leigo, não é um livro técnico.”
Abia e GPV: atuações diferentes e complementares
Na visão do sanitarista Márcio Villard, presidente do Grupo Pela Vidda, desde o início, a Abia e o GPV têm atuações um pouco diferentes e complementares. A principal característica do trabalho da Abia é a fomentação do debate com uma visão mais científica e acadêmica sobre HIV e Aids.
Marcio Villard Foto: Fernando Frazão/Agência Brasil
Já o GPV, que surgiu como um grupo, visa principalmente reunir pessoas vivendo com HIV/Aids para discutir suas questões e dúvidas, para aprender uns com os outros e acolherem-se. “São duas instituições com uma importância muito grande no Brasil, porque contribuíram e contribuem para o debate sobre o tema. O Pela Vidda tem uma importância muito grande, porque fomentou a criação, no Brasil, das redes Vivendo, algo que não existia até 1995”, explica Villard.
Desde 1996, com a chegada do tratamento que possibilita qualidade de vida às pessoas vivendo com HIV, começou um esvaziamento do GPV e uma redução das reuniões e da convivência. Bem diferente da década de 1980, pois, ao descobrir a infecção, a maior parte das pessoas não procura um grupo, não sente necessidade de uma organização e sabe que, “hoje em dia, é possível ter uma vida normal se realmente se tratar”, segundo Villard.
Assim, de acordo com seu presidente, o GPV tem hoje uma forte atuação na defesa dos direitos humanos com uma linha interseccional, pois desenvolve trabalhos em relação a HIV/Aids, inclusão social, respeito aos direitos de transexuais, jovens, mulheres e outros.
Viva a vida
Para Villard, Herbert Daniel é uma referência, um dos fundadores do movimento de enfrentamento ao HIV e à Aids no país. Ele foi articulador da carta dos direitos das pessoas vivendo com HIV e Aids em 1988. “Ele tinha uma fala contrária à morte civil e de ressalva à vida. A importância dele é enorme para o movimento, que é unânime nesse reconhecimento.”
Atualmente, assim como no início da epidemia, o impacto da notícia de infecção pelo HIV ainda é imenso na vida das pessoas, mesmo com tratamento gratuito para todos os brasileiros no SUS, incluindo testes. Naquela época, as pessoas que se descobriam infectadas não tinham expectativa de vida, pois não se sabia muito sobre o vírus, não havia remédios ou tratamentos. “Era tudo muito complexo”, avalia Villard.
O sanitarista defende que o impacto do resultado positivo para HIV na vida de Herbert Daniel foi tão grande, que, ao contrário de muitas pessoas, ele queria aproveitar ao máximo o tempo que lhe restava, debruçar-se sobre o tema, viver e lutar.
Para Herbert, o preconceito era mais devastador que a própria síndrome e estar vivo era um desafio aos que não respeitavam os direitos de cidadãos e cidadãs vivendo com HIV/Aids. Ele tinha uma visão vanguardista sobre sexualidade e gênero como esferas políticas da vida humana, como parte dos direitos humanos, e lutou pelo rompimento do tabu que pairava – e ainda paira – sobre esses temas.
Rede Nacional de Pessoas Vivendo com HIV e Aids
Um dos objetivos de vida de Herbert Daniel era combater a morte civil, que nasce do preconceito. E uma das maiores contribuições dele para essa luta no país, via GPV, foi a criação da Rede Nacional de Pessoas Vivendo com HIV e AIDS (RNP+ Brasil).
Desde 1991, o GPV realiza encontros anuais de pessoas vivendo com HIV/Aids, o Vivendo. Em 1995, dez pessoas, inspiradas na Rede Mundial de Pessoas Vivendo com HIV/Aids (Global Network of People Living HIV/Aids – GNP+), decidiram criar uma rede nacional, cujo lema é “antes nos escondíamos para morrer, hoje nos mostramos para viver” – em homenagem ao legado de Herbert Daniel.
Ao longo dos anos, à medida que aumentava o número de adesões à RNP+, multiplicavam-se as conquistas do grupo. Em todo esse tempo de atuação, a RNP+ vem acumulando conhecimentos sobre legislações que regem políticas públicas de saúde em relação a DST/Aids no mundo todo, de modo a manter-se imprescindível nesse movimento.
Atualmente, tem núcleos jurídicos em todo o país; executa parcerias com governos de todas as esferas em ações de enfrentamento; acompanha a implementação de políticas públicas relativas a DST/Aids e tem assento nas principais comissões nacionais e internacionais que tratam da temática e membros conselheiros municipais e estaduais de saúde.
Para saber mais
“O fim da Aids?”, artigo do antropólogo Richard Parker, diretor-presidente da Abia.
UnAids, programa da ONU criado em 1996 para encontrar soluções e oferecer ajuda a países do mundo todo para o combate ao HIV e à Aids.
Departamento de Doenças de Condições Crônicas e Infecções Sexualmente Transmissíveis do Ministério da Saúde do governo brasileiro.