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Mas o que é gênero, afinal? Parte 1

Tem o gênero feminino. O gênero dramático. O gênero neutro. A identidade de gênero. Entenda as diferenças entre alguns usos da palavra gênero.

Muitas perguntas permeiam nossa mente quando o assunto é gênero. Isso existe? O que é gênero? Existe ideologia de gênero? O que significa gênero neutro? Mas os gêneros das palavras em português não são masculino e feminino? Tem gênero neutro na gramática?

E quando o assunto envereda para o campo do sexo e da sexualidade então… São comuns expressões como: “Eu sou macho! Não existe esse negócio de gênero! Que igualdade de gênero que nada! Com esse politicamente correto, ninguém mais pode falar sexo; tem de ser gênero!”.

Devido a tantas dúvidas que acabam por fomentar o preconceito, esta quarta matéria da série Todos os Gêneros da campanha #FundacaoDebate vai tratar de algumas diferenças entre os usos da palavra gênero. Esse conhecimento pode auxiliar na derrota das discriminações e na extinção do aniquilamento de pessoas “diferentes”.

Aqui vou abrir um parêntese para um breve depoimento em primeira pessoa. Fiz uma pesquisa para escrever esta matéria a fim de atualizar os conhecimentos aprendidos no curso de formação de professores em gênero, orientação sexual e relações étnico-raciais promovido pela Secretaria Especial de Políticas para as Mulheres da Presidência da República e ofertado pela Faculdade de Educação da Universidade de Brasília em 2009.

Nessa pesquisa, descobri que o material do curso, de 14 anos atrás, ainda é bastante atual. E me lembro que muitos colegas desistiram ainda no início. Foi um curso denso que exigia muitas horas de leitura e reflexão sobre um assunto que, logo ficou claro, ainda era(é?) um tabu para muitas professoras e muitos professores.

Os que permaneceram tiveram a oportunidade de aprender muito com profissionais muito qualificados e um material de qualidade e excelência que pode ser visualizado aqui. Fecho aqui o parêntese do texto em primeira pessoa.

Uma palavra, muitos significados

Ultimamente no Brasil, a palavra gênero tem sido bastante mal interpretada, em especial quando particulariza as palavras identidade e igualdade. E, quando acompanhada da palavra neutro, a confusão é generalizada.

Gênero é uma palavra polissêmica, ou seja, tem muitos significados. No Caldas Aulete digital, um conceituado dicionário que tem “mais de 818 mil verbetes, definições e locuções em permanente atualização” e “de crescimento infinito, sempre em interação com a língua portuguesa”, ela aparece com nove definições.

O dicionário também registra a gíria fazer gênero, muito usada no Brasil em situações em que a pessoa finge para impressionar, e a expressão não fazer o gênero de, que significa que algo ou alguém não é do agrado de uma pessoa.

Algumas das definições, resguardadas as diferenças teóricas dentro de cada campo científico, contemplam áreas como literatura (natureza da composição literária), cinema (natureza do assunto) e biologia (categoria de agrupamento/conjunto de espécies). Quem nunca ouviu falar em gêneros literários, gêneros textuais, gêneros cinematográficos?

O peso da cultura

Nas décadas de 1960 e 1970, o movimento feminista formulou um conceito de gênero baseado na observação do peso da cultura no entendimento do que seja masculino e feminino.

Para o feminismo, o masculino e o feminino não são intrínsecos à anatomia dos corpos, mas resultado de um intenso processo sociocultural que nos ensina (ou nos obriga) a agir conforme o que é determinado para cada gênero.

Inclusive uma noção semelhante já se encontra registrada no dicionário Caldas Aulete digital: “a forma que a diferença sexual assume, nas diversas sociedades e culturas, e que determina os papéis e o status atribuídos a homens e mulheres e a identidade sexual das pessoas”.

Essa organização binária do gênero em masculino e feminino está entranhada na nossa cultura há anos e realmente é muito opressiva, em especial para mulheres e pessoas não binárias, aquelas que não adotam rótulos de gênero nem se preocupam em apresentar características e aparência socialmente relacionadas ao feminino ou ao masculino.

Essa opressão acontece mesmo antes de nosso nascimento. Convivemos, desde sempre, com uma divisão binária dos seres humanos baseada exclusivamente na constituição anatômica e cultivamos uma forte expectativa social em relação à maneira como meninas e meninos, mulheres e homens devem andar, falar, se vestir, se sentar, brincar, dançar, trabalhar, sentir.

“Homem não chora nem por dor, nem por amor. E antes que eu me esqueça, Nunca me passou pela cabeça lhe pedir perdão. […] Todo mundo sabe que homem não chora
Não chora, não”

Letra da música Homem não chora, de Frejat

Mas você já parou para pensar o que é ser mulher e o que é ser homem? Será que as meninas começam a gostar de rosa e os meninos de azul ainda no útero de suas mães? Quem disse que calça é roupa de homem? Por que uma menina não pode brincar com um carrinho e um menino, com um fogãozinho? Por que homem não pode chorar?

Ou por que as mulheres não podiam votar, estudar e exercer uma profissão? Por que as mulheres não têm direito sobre o próprio corpo? O que faz as mulheres acreditarem que são as responsáveis pela organização da rotina da casa e da família? Quem disse que homens não são frágeis?

Graças às feministas, essa opressão começou a ser seriamente questionada e as mulheres têm lutado, desde sempre e a duras penas, por igualdade de direitos.

Sexo e sexualidade

Em nossa sociedade, ao passo que o gênero passou a ser compreendido como produto da realidade social, o sexo continua sendo determinado pelas características biológicas e pelas genitálias. Já a sexualidade, ou orientação sexual, vem sendo compreendida como a atração sexual ou romântica entre as pessoas.

Estudos mais recentes têm levado a uma categorização da orientação sexual para além de heterossexual, homossexual e bissexual. Isso pode ser comprovado com uma consulta a um glossário digital concebido e criado coletivamente sob coordenação da entidade norte-americana LGBTQIA Resource Center.

A ampliação de categorias que nomeiam os diferentes e diversos desejos (ora sutis, ora explícitos) reflete uma vitória da comunidade LGBTQIAPN+. Não só por materializar sua existência, mas também, e principalmente, por possibilitar uma concepção de sexualidade fluida, já que a atração e o desejo sexual podem mudar ao longo da vida.

O glossário do LGBTQIA Resource Center é constantemente alimentado desde o início dos anos 2000, quando foi ao ar pela primeira vez. Desde a última atualização, em janeiro de 2020, ele registra 27 tipos de orientação sexual com as respectivas definições.

A entidade brasileira Crônicos do Dia a Dia (CDD), que reúne pessoas que sofrem com doenças crônicas, publicou uma tradução de alguns desses verbetes para o português brasileiro. Entre eles está, por exemplo, assexual, definido como um amplo espectro de orientações sexuais.

“Algumas pessoas podem não sentir atração sexual ou romântica por ninguém, enquanto outras podem experimentar graus variados de atração sexual ou romântica por pessoas. Quem se identifica com essa orientação não precisa se abster do sexo para ser assexual.”

Outro exemplo é pansexual, definido como quem sente atração por pessoas de todos os gêneros e sexos. Segundo o glossário, “um identificador típico para quem é pansexual é que o gênero não é um fator de atração sexual ou romântica”.

Como nossa sociedade tem sido cruel com pessoas não binárias, muitas também recusam rótulos de sexualidade como forma de lidar com opressões, preconceitos e dificuldades. É comum, hoje em dia, que as pessoas não queiram se identificar com uma ou outra orientação sexual, já que seus desejos poderão mudar com o tempo.

Identidade de gênero

A identidade de gênero pode ser compreendida como a percepção subjetiva de ser de um ou outro gênero conforme atributos, comportamentos e papeis convencionalmente estabelecidos para as pessoas.

O fato de ser menina ou menino ou de pertencer a um ou outro gênero tem a ver com as referências iniciais no mundo e são frequentes as tentativas de justificar as desigualdades entre os gêneros com explicações biológicas ou psíquicas.

No senso comum, essas diferenças de gênero são naturalizadas e interpretadas como se fossem determinadas pelos corpos, pelas diferenças biológicas. E essa compreensão tem levado a indagações sobre os modelos de comportamento mutuamente excludentes impostos às pessoas em função de sua constituição anatômica.

Do ponto de vista das ciências sociais, comportamento sexual ou comportamento de gênero não são intrínsecos, biológicos, peculiares aos seres humanos. Também não existe o comportamento sexual ou o comportamento de gênero normal, certo, superior, melhor. Essas desigualdades entre os gêneros são socialmente construídas.

Conhecer e entender essas diferentes realidades ajuda a ter um olhar mais atento e crítico para determinados processos que geram e consolidam desigualdades e estereótipos.

O preconceito surge também porque boa parcela das pessoas ignora, desconhece todos esses conceitos e age preconceituosamente quando se depara com ações, comportamentos e aparências diferentes da categorização binária.

Não existe “ideologia de gênero”

Em todo o mundo, a discussão sobre gênero e sexualidade tem sido alvo de protestos dos conservadores com o principal argumento de que ela é fruto de interpretações equivocadas do feminismo.

Dessa forma, no início dos anos 2000, surgiu um movimento antifeminista encabeçado por grupos fundamentalistas de uma ala conservadora da Igreja Católica antigamente conhecida como Santa Inquisição Romana e Universal.

Segundo os professores David Paternotte, da Université Libre de Bruxelles, e Roman Kuhar, da Universidade de Ljubljana, os conservadores começaram a usar a expressão “ideologia de gênero” como estratégia política.

No artigo “’Ideologia de gênero’ em movimento”, os professores mostram que o florescimento dos estudos de gênero a partir do movimento feminista teve, como resposta do conservadorismo, a criação artificial do termo “para rotular negativamente um campo científico em franco processo de crescimento e reconhecimento. Ele não tem base científica, portanto ideologia de gênero não existe”.

Mas esse movimento continua crescendo e capturando as pessoas pelo medo. Elas estão sendo levadas a acreditar que os professores querem transformar crianças e jovens em gays e lésbicas ao debater gênero e sexualidade nas aulas. Ou que um médico deve se recusar a realizar aborto em uma criança grávida que corre risco de morrer.

Com base no argumento de que os estudos de gênero estão provocando uma revolução antropológica que nega as diferenças sexuais e a complementaridade dos sexos, os conservadores estabelecem um pacto com a chamada ideologia de gênero, considerada uma grave ameaça à família tradicional.

A quinta e última matéria da série Todos os gêneros vai mostrar como o conceito social de gênero tem influenciado algumas mudanças no português e em outras línguas.

Série Todos os Gêneros. Primeira matéria. Segunda matéria. Terceira matéria.

Use a #FundacaoDebate ao divulgar a campanha nas suas redes sociais.

Caroline Cardoso – Comunicação FVHD, jornalista, doutora em Linguística

É permitida a reprodução, desde que citada a fonte.