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Mulheres na ciência: exclusão, invisibilidade e baixa representatividade

Cada vez mais mulheres fazem pesquisa no país, mas elas ainda enfrentam desafios como conciliação de vida doméstica e vida profissional e ameaça do estereótipo

O Dia Internacional de Mulheres e Meninas na Ciência, comemorado em 11 de fevereiro, foi estabelecido em 2015 pela Organização das Nações Unidas (ONU) como parte da Agenda 2030 para promover a igualdade de gênero. Para a ONU, a redução das desigualdades entre mulheres e homens é um dos objetivos do desenvolvimento sustentável. Isso inclui a promoção do acesso à ciência, o tratamento igualitário e a participação de mulheres e meninas no desenvolvimento científico.

No Brasil, as mulheres representam quase 52% da população total e cerca de 54% de pessoas doutoradas, segundo o livro Mestres e doutores 2015: estudos da demografia da base técnico-científica brasileira (CGEE/SIRH CT&I, 2016), que apresenta um perfil da pós-graduação no Brasil de 1996 a 2014.

Apesar de ser maioria do total populacional e do total de doutorados no país, as mulheres não estão igualmente representadas nos níveis mais elevados das sociedades científicas, em postos de prestígio e poder (mesmo em carreiras consideradas femininas), nem nas ciências “duras” (Exatas, Engenharias, Computação), comumente com maior reconhecimento social.

Demografia da ciência brasileira

Dados do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq) mostram que, de 2001 a 2011, o percentual de mulheres bolsistas em todas as áreas e níveis não chegava a 36%. No nível 1A, o mais elevado das bolsas de produtividade em pesquisa, esse percentual não ultrapassou os 24%. Nas Ciências Exatas, Engenharias e Computação, havia entre 29% e 36% de mulheres bolsistas e, em 2011, apenas 33% das bolsas de iniciação científica foram destinadas a elas.

A baixa representatividade nos grupos de excelência em pesquisa, como os Institutos Nacionais de Ciência e Tecnologia (INCTs), ligados ao MCTI, e na Academia Brasileira de Ciências (ABC) corrobora a exclusão feminina do campo científico, em especial nos postos de poder e nos níveis mais altos da carreira. Somente 14% dos cientistas da ABC são mulheres e apenas 18 dos 126 INCTs existentes no país são coordenados por elas.

Essa disparidade também aparece quando se analisa, por exemplo, o volume de publicações científicas no país. O relatório A Jornada do Pesquisador pela Lente de Gênero (Elsevier, 2020) mostra que, dos artigos publicados na base Scopus entre 1999 e 2003 e entre 2014 e 2018, 44% eram de autoria feminina e quase 56%, masculina. Nas áreas de Computação e Matemática, esse percentual é ainda mais alarmante: 75% das publicações são assinadas por eles. Em 2014, apenas 13% dos autores mais citados em publicações especializadas eram mulheres – 3,7% nas Engenharias e 31% nas Ciências Sociais.

Esses resultados são preocupantes, porque mostram que o avanço das mulheres na carreira científica é muito mais lento que o dos homens. Elas têm enfrentado vários obstáculos de acesso, permanência e ascensão nas carreiras científicas e tecnológicas, sendo historicamente alijadas do processo de acumulação de capital científico, responsável direto por prestígio e, consequentemente, mais fomento à pesquisa.

Mães cientistas

Devido à configuração patriarcal da maioria das sociedades, os afazeres domésticos, a criação dos filhos e os cuidados com os familiares recaem sobre elas. Esse desequilíbrio na divisão de tarefas domésticas entre mulheres e homens é um dos grandes vilões da exclusão feminina da carreira científica.

A engenheira agrônoma Fabiana Rodrigues, doutora em Agronomia pela Universidade de Brasília (UnB) e mãe de duas meninas, conta que deu os primeiros passos como pesquisadora ainda na graduação na Universidade Estadual de Goiás (UEG) – campus Ipameri, entre 2001 e 2005, por meio do Programa Institucional de Bolsas de Iniciação Cientifica (Pibic).

Doutora Fabiana Rodrigues

Engenheira agrônoma

Cinco anos depois, ingressou no mestrado em Engenharia Agrícola da UEG – campus Anápolis, mas sem bolsa. Ela acabara de ter a primeira filha, precisava trabalhar e não queria abandonar a pesquisa: “Não foi fácil conciliar”. Em 2016, a engenheira decidiu fazer doutorado. Novamente, foi sem fomento e ela precisou se manter trabalhando. No último ano do curso, ela engravidou da segunda filha e as pressões para o cumprimento de prazos foram excessivas ao ponto de gerar “uma espécie de autoculpa”, nas palavras de Fabiana.

“Durante todo esse processo de desenvolvimento intelectual e profissional, principalmente nas etapas do mestrado e do doutorado, o maior obstáculo foi a maternidade. Conciliar o tempo antes dedicado aos estudos, ao trabalho, às viagens e os horários, com duas filhas pequenas, foi um desafio. Houve, nesses períodos, muita cobrança dos orientadores em relação ao término do curso.”

Fabiana Rodrigues

O impacto negativo da maternidade no universo científico foi objeto de pesquisa realizada pelo movimento Parent in Science (algo como “mães e pais cientistas” em português). Para 81% das 1182 cientistas entrevistadas, a maternidade teve um impacto negativo ou muito negativo na carreira, 77% delas eram mães e 54%, as únicas pessoas responsáveis pelos filhos.

Essa pesquisa também mostrou que houve aumento de publicações por parte das mulheres que não se tornaram mães; ao passo que houve uma brusca redução para as mães cientistas, pelo menos até o filho completar quatro anos de idade. Depois disso, recomeça a ascensão.

A difícil arte de conciliar vida doméstica e vida profissional

Para Raquel Freitag, doutora e docente dos programas de pós-graduação em Letras e em Psicologia da Universidade Federal de Sergipe (UFS), a desigualdade e a invisibilidade das mulheres na ciência se dão porque, entre outras coisas, “somos responsáveis pelo cuidado na família, seja na infância, seja no envelhecimento. As agendas femininas são ditadas pelas demandas da família e depois preenchidas com as demandas profissionais”.

Doutora Raquel Freitag

Linguista, bolsista nível 2 do CNPq e docente da UFS

Muito mais que os homens, as mulheres precisam organizar a própria vida em função de várias atividades ainda compreendidas, e historicamente vistas, como de responsabilidade exclusiva delas. Por exemplo, aceitar um convite para um evento científico implica, para a maioria dos homens, confirmar presença, preparar a apresentação e arrumar as malas.

Para as mulheres, significa pensar em toda a logística da família antes de aceitar o convite. Depois, preparar a apresentação, organizar toda a agenda familiar, arrumar as malas e passar as últimas recomendações aos filhos, ao companheiro e/ou a quem for ficar na casa enquanto ela estiver fora.

“Por muito tempo, eu fui professora do curso noturno porque durante o dia precisava cuidar de meu filho, pois estava trabalhando em um lugar onde não contava com apoio da estrutura familiar. Era uma rotina de tripla jornada, muito comum também com minhas alunas do noturno. Infelizmente.”

Raquel Freitag

A ameaça do estereótipo

A maternidade é apenas uma das circunstâncias que exclui as mulheres da ciência e torna o desejo de se desenvolver e crescer intelectual e profissionalmente um sonho distante. Além dela, há a ameaça do estereótipo, um conceito desenvolvido no âmbito da Psicologia Social para explicar a redução de desempenho de pessoas pertencentes a grupos estereotipados.

“Números são difíceis, matemática não é para meninas. Lembro que, na escola, enquanto o professor de matemática encorajava os meninos a avançarem a lição no livro; para mim, mesmo estando em nível idêntico, não tinha esse encorajamento, estava bom assim, não precisava mais”, relembra Raquel.

Acreditar que não pode, não tem habilidade para uma área assimilada como “naturalmente de homem/de menino” pode levar meninas e mulheres a abandonarem seus planos de se tornarem futuras pesquisadoras. Nas ciências “duras”, ainda vigora o estereótipo da mulher como “naturalmente” frágil, lenta, incapaz e inábil com números e cálculos.

Somada a isso está a escolha da área da ciência em que se vai atuar. É senso comum que as mulheres que escolham a carreira científica fatalmente seguirão para as Ciências Humanas ou Sociais, consideradas soft.

“Já me pediram para fazer o café, já me pediram para fazer a ata. Só porque eu era a mulher e de humanas. Lembro da primeira reunião que participei para uma proposta de projeto em que me disseram que “pesquisa de pendrive” não entrava no projeto, nem tinha espaço para brincadeira de roda e teatrinho de fantoches. Depois que consegui mostrar o que eu fazia e que tinha produção compatível para concorrer no edital, tive que ouvir que nem parecia de humanas”, conta Raquel.

Uma hipótese é que, durante muito tempo, a presença de mulheres no universo científico era raríssima, sendo um ambiente quase exclusivamente masculino, em especial nas Ciências Exatas, nas Engenharias e na Tecnologia. E esse é, ainda hoje, o imaginário coletivo sobre os cientistas. Pouca gente sabe que a história está repleta de mulheres que criaram, pesquisaram e contribuíram para o desenvolvimento da sociedade por meio de suas pesquisas e seus estudos.

No século 19, por exemplo, a cientista britânica Ada Lovelace escreveu o primeiro algoritmo para ser processado por uma máquina, que hoje é a base dos programas de computadores. Em 1972, Maria da Conceição de Almeida Tavares, considerada a mais brilhante economista brasileira, publicou o ensaio Auge e Declínio do Processo de Substituição de Importações, um clássico da Economia e um marco no estudo do processo de industrialização do Brasil.

Mais recentemente, as cientistas brasileiras Jaqueline Góes de Jesus e Ester Cerdeira Sabino participaram da equipe que sequenciou o genoma do novo coronavírus. Você pode dar um Google para conhecer outras cientistas brasileiras.

Superar a exclusão, a invisibilidade e a baixa representatividade

A exclusão, a invisibilidade e a baixa representatividade das mulheres na ciência são resultados, entre outras coisas, da característica patriarcal de nossa sociedade. As mulheres não são valorizadas, incentivadas, nem reconhecidas como competentes, capazes, aptas e hábeis para calcular, investigar, criar, inventar, construir, programar e, em última instância, pensar.

São muitos os desafios para a superação desses obstáculos, por isso é importante que haja campanhas educativas sobre o tema, discussões sobre o preconceito de gênero nas ciências, programas de iniciação à pesquisa científica para meninas na educação básica, programas de fomento para cientistas mirins nas escolas e incentivo à participação e ao protagonismo das meninas em eventos científicos.

Algumas medidas nesse sentido vinham sendo adotadas por agências de fomento do governo brasileiro. Em 2013 e em 2018, por exemplo, o CNPq lançou editais para estimular a formação de mulheres cientistas na área de Ciências Exatas, Engenharias e Computação, contemplando, inclusive, estudantes da educação básica e do ensino superior que tivessem interesse em realizar pesquisa científica e tecnológica.

Porém, devido ao contingenciamento de recursos para o Ministério da Ciência, Tecnologia e Inovações (MCTI), desde 2019 a situação da ciência brasileira é extremamente preocupante, atinge todas e todos que realizam pesquisa no país e tem promovido uma fuga de cérebros.

Para mudar esse cenário, é necessário um comprometimento de toda a sociedade. Estímulos precoces, encorajamento e segurança devem ser proporcionados às meninas desde a mais tenra idade, para que se sintam capazes e acreditem em si mesmas e em suas habilidades, mas não prescindem de políticas públicas de fomento que garantam a entrada e a permanência de meninas e mulheres na ciência.

Por Caroline Cardoso