Até quando levar vantagem pessoal em prejuízo da coletividade é ético?
Me fiz esta pergunta após ouvir a história de um taxista de Brasilia, que se tornou meu amigo, de tanto que usava seu taxi. Usava, pois com a chegada do Uber e a corrida ficando 40% mais em conta, resolvi optar pelo aplicativo, afinal era muito mais barato.
Hoje, tendo que fazer um favor para um amigo e levar umas caixas de Brasília para Belém, recorri ao meu velho amigo taxista de todas as horas. Pedi a ele que subisse até a sala onde trabalho para me ajudar com as caixas, coisa que o motorista do Uber não faz. Ele, sem ressentimento algum pelo meu abandono, prontamente me atendeu.
Seguimos para o aeroporto e no caminho, meu amigo perguntou-me se eu não conheci alguém de empresa de vigilância ou segurança. Indaguei dele o porquê. O taxista me disse que precisava completar sua renda e que no taxi não estava mais rendendo o suficiente para pagar nem as despesas da família.
Quis então saber o motivo.
Ele, todo tristonho, me descreveu a situação terrível que ele e seus colegas vem enfrentado para se manter e manter o serviço de taxi. Disse que agora passa horas no ponto – ele faz ponto em um hotel do setor hoteleiro sul – para pegar uma corrida, enquanto isso, os hóspedes, seus passageiros de antes, embarcam em carros que são acionados pelo aplicativo Uber, de instantes em instantes.
Por que você não vai para o Uber? – perguntei.
Ele me disse que os colegas que foram estão arrependidos, pois o que ganham mal dá para as despesas e não sobra nada para a manutenção do carro, teve colega que rodou quinze dias sem estepe porque não tinha dinheiro para comprar um pneu. Só uma troca de óleo custa cento e cincoenta reais, me relatou o taxista.
Íamos chegando ao aeroporto, quando ele completou, “no domingo, encostei aqui e a fiscalização me parou para examinar meus pneus, cinto de segurança, estepe, documentos meus e do carro. Os do Uber eles não fiscalizam.”
Desci, me despedi do taxista, fui ao balcão, despachei minha bagagem, segui para o embarque rumo ao portão vinte um. Tranquilo, peguei as esteiras rolantes, de repente firmei a vista e fui vendo as propagandas do Uber nos monitores eletrônicos e toda a conversa que tive com meu amigo taxista voltou a me incomodar.
Esqueci de mencionar que, antes do Uber, o taxista era um rapaz alegre e cheio de planos, até trocou o carro antigo por um novinho em folha, seu orgulho do momento. Falava do carro novo como se tivesse dizendo: “Olha como estou prosperando!”.
Lembrei-me que meu pai foi taxista no passado, criou todos os filhos nesta profissão e isto me incomodou mais ainda. Muito mais quando li nas redes sociais que o Uber, na minha ausência, havia desembarcado em Belém.
Não é justo.
Estes pobres motoristas não tem como competir com o Uber. Eles vão perder neste jogo desleal. E os motoristas que trabalham para Uber também não estão ganhando com isso. Só quem ganha é o aplicativo.
Conclui que de fato ele tinha razão.
O país também perde, o aplicativo é um grande negócio globalizado e todo lucro obtido nas cidades brasileiras alimenta a economia e os investidores sei lá de onde.
Temos que fazer algo contra isso.
Mas daí me veio um sentimento angustiante de que muito pouco pode ser feito.
O Uber joga com a vantagem individual e oferece ganhos para as pessoas que usam o aplicativo. Tem a comodidade de chamar um carro pelo celular. Poder pagar com o cartão de crédito. O preço do serviço chega a ser até 40% menor que o taxi normal.
O Uber consegue estas vantagens por que contribui muito pouco com a coletividade e tem pouquíssimas responsabilidade social. Paga pouco ao motorista que adere como usuário dos serviços. Não se submete a legislação e ao regime de concessões. Não tem impostos e taxas municipais de IPVA, selagem, licenciamento. Tem custo operacional muito baixo em face do uso de tecnologia de dados e informações ponta a ponta.
As pessoas que aderem ao aplicativo e deixam de utilizar o concessionário público de táxi, se livram das despesas com o sistema público e por ser mais vantajoso, não aceitarão pensar no prejuízo que o Uber está causando ao seu país e aos seus nacionais.
Parei, em frente portão vinte e um, confirmei meu voo, vi que ainda dispunha de meia hora antes da chamada para o embarque, agasalhei minha mochila, sentei-me e pus a imaginar que a forma de negócio globalizado do Uber já está por todos os cantos.
No agronegócios. No comércio de produtos baratos vindo da Ásia, principalmente da China. Nas commodites, eletrônicos, carros e alimentos. Pouco mais de 24 empresas produzem todo o alimento processado que é consumido no Planeta.
A floresta que está sendo derrubada para plantar soja ou criar gado é uma exigência dos investidores da bolsa de Hong Kong e um negócio onde o interesse individual do empresário local, que faz o trabalho sujo de devastar os recursos naturais, casa com o da multinacional de alimentos que pressionam para receber a matéria prima e transformá-la em alimento processado, com uso intensivo de agrotóxicos, a um preço bem abaixo do orgânico produzido pela agricultura familiar com todos os cuidados ambientais imposto pelas leis e pelo estado.
O desejo coletivo de manter a cobertura vegetal e os milhares de seres que dela dependem não resiste frente a pressão do mercado.
O interesse individual e o egocentrismo que está destruindo a vida é alimentado pelo mercado livre de controle, uma vez que as empresas globalizadas são mais fortes que os estados nacionais.
O taxista vai perder. Será o mais novo segurança da cadeia de supermercados que vendem os produtos processados produzidos a custa de externalidades insuportáveis. O agricultor da agricultura familiar não resistirá, abandonará sua terra, suas árvores, suas nascentes preservadas, suas abelhas polinizadoras e migrará para cidade, para trabalhar como classificador dos produtos agrícolas produzidos em monocultivos, carregados de venenos e transgenia, antes que vá para as gôndolas encher os olhos do consumidor, papel que nos sobrou ao deixarmos de sermos humanos, coletivos e fraternos.
Lá longe, uma ínfima minoria recebe os dividendos gerados pelo sistema globalizado. Só oito por cento de pessoas detém oitenta por cento de toda riqueza produzida no Mundo.
Meu desânimo deu lugar a uma grande esperança, quando desci no Aeroporto Internacional Val-de-cans Júlio César Ribeiro e na saída encontrei aquelas famílias fazendo festa para receber parentes e conhecidos, um costume que resiste em poucos lugares.
Este nosso jeito carinhoso, chameguento, cabano, paraense papaxibé, com tucupi, jambú tacacá, farinha de Bragança nunca será globalizado e é ele que fará a diferença que precisamos para nos salvar coletivamente e nos ensinar a usar o tal Uber e outros aplicativos sem perder a humanidade e a fé em Nossa Senhora de Nazaré.
José Carlos Lima – diretor da Fundação Verde Herbert Daniel
2 Comments
Wanderley Ribeiro
Ótimo texto, além de bem escrito transparece o sentimento do autor. Mas sempre existe um porém, não é verdade? Nesse caso acredito que o nosso porem ira de encontro com a esperança que nos resta dentro da humanidade e afetividade quando o autor diz que essas não nos podem ser tiradas. Acredito que já se foram junto com o coletivismo, já se foram junto com os festejos antigos e tradições folclóricas a cada dia mais perdendo sua tradição e valores abrindo espaço para o novo e tecnológico. Enquanto o individualismo continuar ganhando força dentro da nova cultura tecnológica, onde informação instantânea estão ao alcance da palma de nossas mãos e tomam lugar à mesa de jantar dentro de nossas casas, onde conversas “tet-a-tet” dão lugar a mensagens e “posts” fotográficos, enquanto continuarmos nos rendendo ao novo que nos enche os olhos com seu brilho encantador e “enganador”, sem que a cultura e tradições sejam mantidas e transferidas dos pais para seus filhos, continuaremos perdendo nossa humanidade, nosso respeito, tradições e tudo o que ainda nos resta como humanos, coletivos e folclóricos. Com profundo respeito a Nossa Senhora de Nazaré e a cultura desse povo paraense a quem tive o privilégio de prestigiar de perto sua procissão, a esperança nada será sem a Fé, essa sim ao meu ver será a única grande força que nos restará como ferramenta de luta e esperança, sem a Fé não nos restará mais nada pois a esperança já foi rendida a muito.
Silvia Knoller
Excelente artigo. Sempre achei isto. Ah, a empresa tem DNA americano.
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