A poluição oceânica é uma realidade nos mares e rios do Brasil. O que muitas pessoas não sabem é que produtos cosméticos utilizados comumente, como esfoliantes e até alguns tipos de tecidos de roupas, soltam pequenos pedaços de plásticos chamados microplásticos. Estes chegam às águas e, sem um tratamento adequado nas Estações de Tratamento de Esgoto (ETEs), podem acidentalmente servir de alimentos para invertebrados. É o que nos conta o Professor Dr. Alexander Turra do Instituto Oceanográfico da Universidade de São Paulo (IOUSP).
Em entrevista exclusiva para a equipe de reportagem da FVHD a respeito de um estudo desenvolvido na região de Santos, litoral de São Paulo, sobre a presença de microplásticos nas águas, o pesquisador afirma que houve ingestão de plásticos por parte dos mexilhões em toda a área pesquisada. Esse estudo, que faz parte do “Programa Lixo nos Mares”, foi desenvolvido na Enseada de Santos, litoral paulista, mas, segundo o doutor Alexander, “outras campanhas que incluam outras regiões (urbanizadas e não urbanizadas) em uma série temporal deveriam ser desenvolvidas a fim de melhor entendermos os riscos da costa brasileira com relação a esse poluente”.
FVHD – Professor Alexander, qual foi o ponta pé inicial para começar seu trabalho de pesquisa sobre os impactos dos microplásticos utilizados pela população e descartados nos rios e oceanos do Brasil? O senhor se baseou em algum estudo já realizado no Brasil ou em outro país?
Alexander Turra – Meu contato com os microplásticos, mais especificamente os plastic pellets, que são pequenas partículas de até 5mm, ocorreu de forma inusitada. Em uma atividade de campo um amigo me mostrou esse material e perguntou o que era. Começamos então a fazer uma série de testes para tentar descobrir. Olhamos, cheiramos, mastigamos (!) e, sem uma resposta, levamos para a casa dele e colocamos sobre um colher no fogo. Quando saiu aquela fumaça preta percebemos que era plástico. Daí começamos a procurar na literatura registros desse material, os quais datavam da década de 1970 na Austrália e Estados Unidos. Descobrimos que os pellets nibs ou “lágrimas de sereias” eram na verdade a forma principal como a matéria prima plástica é comercializada e transportada. Daí iniciamos uma série de pesquisas na região de Santos procurando entender um pouco melhor como essas partículas se distribuíam no ambiente.
FVHD – Com que tipo de substância foi iniciado seu projeto de pesquisa?
Alexander Turra – Os projetos de pesquisa relacionados aos microplásticos e desenvolvidos em meu laboratório foram iniciados com os plastic pellets (nome dado à matéria-prima plástica sob a forma de grânulos com cerca de 5mm de diâmetro). São produzidos a partir do eteno e do propeno, e comprados pelas indústrias transformadoras para serem moldados no formato final dos produtos comumente utilizados pela sociedade. O objetivo do projeto foi buscar entender a contaminação das praias da Enseada de Santos (litoral centro do Estado de São Paulo) através de estudos sobre a composição química (ou seja, tipo de polímero), distribuição e taxa de entrada desses grânulos na área de estudo.
FVHD – Existe uma pesquisa com microplásticos contidos em esfoliantes, cremes dentais e até alguns tipos de tecidos?
Alexander Turra – No laboratório temos uma pesquisa vinculada a microplásticos abrasivos/esfoliantes de polietileno utilizados em cosméticos desde 2013. O objetivo do trabalho é identificar possíveis efeitos fisiológicos de estresse decorrentes da ingestão dessas (e de outras) micropartículas plásticas por invertebrados marinhos, bem como a influência de aspectos da contaminação (ex. tempo e concentração dos microplásticos na exposição aos organismos, e presença ou não de aditivos químicos) nos efeitos observados.
No entanto, desde 2011 trabalhamos com um tipo de PVC com características muito semelhantes (ex. tamanho – na ordem de centenas de micrômetros – e formato – irregular). Junto com outro PVC (cujo tamanho é ainda menor, variando de 0,1 a 1µm de diâmetro), iniciamos em 2011 nossa frente de pesquisa sobre impactos dos microplásticos na biota marinha, investigando a sua biodisponibilidade para invertebrados marinhos. Todos os organismos com os quais trabalhamos naquela época (mexilhões, pepinos-do-mar, ascídias e esponjas) ingeriram os microplásticos e, a partir daí, nos deparamos com as perguntas: “Mas quais os efeitos decorrente disso? E eles variam em função do que?”. Concomitantemente, surgiu a ideia de trabalharmos com mais de um tipo de polímero. Partimos do PVC porque sabíamos que existia a perda para o ambiente através de seu transporte por vias marítimas, e quando decidimos expandir os modelos de microplásticos utilizados nos trabalhos, optamos pelos abrasivos utilizados em cosméticos no Brasil.
FVHD – Até o momento, houve comprovação dos impactos desses microplásticos menores nos mares brasileiros? Quais são os resultados?
Alexander Turra – Os trabalhos vinculados aos efeitos dos microplásticos são basicamente experimentais. Isso porque no ambiente os efeitos de estresse nos organismos são respostas à diferentes impactos que acontecem, muitas vezes, simultaneamente (e.x.: presença de outros poluentes; variações de temperatura, salinidade; outros). Dessa maneira, fica difícil afirmarmos categoricamente que o estresse observado nos organismos coletados é decorrente do contato com os microplásticos.
Uma forma de avaliar o risco do que observamos no laboratório acontecer de fato no meio marinho é verificar se a ingestão dos microplásticos realmente acontece no ambiente, visto que esse é o processo precursor dos efeitos investigados experimentalmente. Até o momento, fizemos uma campanha piloto no Estuário de Santos com o objetivo de avaliar se os mexilhões presentes ali estavam contaminados com os microplásticos. Coletamos organismos em 6 diferentes pontos ao longo do canal e observamos mexilhões contaminados em todos eles. Houve uma variação de 100 a 20% de contaminação. No entanto, ainda não identificamos quais os tipos de plásticos ingeridos.
Essa coleta foi inicial e realizada em apenas uma área de toda a costa brasileira. Outras campanhas que incluam outras regiões (urbanizadas e não urbanizadas) em uma série temporal deveriam ser desenvolvidas a fim de melhor entendermos os riscos da costa brasileira com relação a esse poluente.
FVHD – O senhor havia falado sobre a possibilidade de ampliação desse estudo com o apoio da Companhia de Saneamento Básico da cidade de São Paulo (Sabesp), com o intuito de monitorar as estações de tratamento de São Paulo. Como será feito esse acompanhamento?
Alexander Turra – A pesquisa vinculada a Sabesp ainda está em fase de elaboração, mas o objetivo central dela é monitorar, quali e quantitativamente, a chegada e a saída dos microplásticos vindos de rejeitos domésticos. Isso porque alguns estudos mostram que parte dos microplásticos presentes nos mares e oceanos são originados em nossas casas, quando utilizamos produtos com microplásticos (e.x. cosméticos abrasivos) ou produtos sintéticos passíveis de deterioração, como é o caso das roupas sintéticas ao serem lavadas em máquinas. Sabe-se que os sistemas de tratamento de esgoto (ETEs) não foram pensados e desenvolvidos contando com esse tipo de poluente, por isso é de suma importância entender o que acontece neles quando se trata dos microplásticos.
Pretendemos fazer esse acompanhamento em sistemas de cidades litorâneas, incluindo aspectos como densidade populacional e variabilidades sazonais na discussão. Além disso, como os sistemas de tratamento de esgoto envolvem mais de um procedimento/etapa, pretende-se avaliar a qualidade da retenção dos microplásticos em cada uma delas (quanto e qual o tipo), visando entender como esses procedimentos estariam atuando.
FVHD – A partir desses resultados coletados do monitoramento das estações de tratamento de São Paulo, quais serão as próximas providências?
Alexander Turra – As próximas providências dependem estritamente do tipo de resultado que obtivermos. No entanto, acreditamos que elas estejam vinculadas ao desenvolvimento de estratégias que aumentem a eficiência de retenção dos microplásticos nas ETEs, juntamente com campanhas de sensibilização da população para que a quantidade de microplásticos que chegam ali também diminua. Isso também passa pela adaptação da indústria cosmética e têxtil, que pode desenvolver produtos que reduzam a geração desses produtos. Outro aspecto que devemos considerar é o quanto desses microplásticos oriundos de nossas casas estão ficando em nossa costa e impactando nossos organismos. Para isso, o monitoramento da biodisponibilidade desse poluente é uma importante ferramenta. Assim integramos a origem, o destino e os impactos de parte da poluição marinha por microplásticos.
FVHD – Diante da comprovação do descarte desses microplásticos vindos de substâncias utilizadas livremente no Brasil, como esfoliantes, cremes dentais e alguns tecidos, qual é o papel do Governo e da população para a prevenção desse tipo de poluição?
Alexander Turra – O papel do governo é de regulamentar, incentivar e fiscalizar a execução de normas que possibilitem a diminuição do aporte de microplásticos para o ambiente marinho. Essas ações são amplas e atuam desde nos setores produção, até no transporte e no consumo de produtos plásticos (dos já produzidos em tamanhos diminutos, como é o caso dos esfoliantes, até os produtos de grande tamanho que podem ser fragmentados em escalas micrométricas, como é o caso dos tecidos sintéticos). Também cabe ao governo disponibilizar as informações que já temos acerca dessa problemática em campanhas de sensibilização que possam atingir a população.
Já a sociedade civil, uma vez consciente dos riscos e impactos provenientes dos microplásticos, tem como papel fazer um uso adequado de produtos que contenham resinas plásticas, evitando o consumo desnecessário (dando opções a outros materiais com a mesma função como é o caso de sementes ou argila para os esfoliantes abrasivos; ou o algodão no caso das roupas). Outra ação importantíssima da população é a mobilização. Ações de sensibilização para pessoas que ainda não conhecem a problemática e movimentos que cobrem ações do governo e de empresas são de suma importância.
Um exemplo de sucesso é a campanha internacional “Beat the microbeads” (ou, em português “Combata os microplásticos”) que pode ser acessada pelo site, lançada em 2012 pelas fundações Plastic Soup Foundation e North Sea Foundation. Desde então, a campanha conseguiu o apoio de inúmeras ONGs pelo mundo e, através de abaixo-assinados, aplicativos, vídeos no youtube e falas à Comissão Europeia e UNEP alcançou com sucesso o comprometimento de grandes empresas farmacêuticas (como a Unilever, LÓréal, Colgate/Palmolive e Jonhson & Jonhson) a parar de utilizar microesferas plásticas em seus produtos. No Brasil esse movimento também está presente, com algumas empresas já tendo aderido. Mas ainda há necessidade de ampliação para a totalidade das empresas e o papel do Ministério do Meio Ambiente é fundamental em criar instrumentos legais que reforcem essa necessidade.
*Essa entrevista teve a colaboração das alunas do IOUSP, Marina Ferreira Mourão Santana e Liv Ascer.