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Voto feminino no Brasil 90 anos depois

Ainda estamos longe de atingir o equilíbrio na participação de homens e mulheres na vida política do país.

Manter as mulheres longe das urnas, seja como eleitoras, seja como candidatas a cargos eletivos, sempre foi uma estratégia masculina de manutenção do poder. Talvez boa parte das quase 110 milhões de brasileiras de hoje não tenham noção de que, até bem pouco tempo, mais precisamente 90 anos atrás, não tínhamos direito de votar, nem de concorrer em uma eleição. Foi apenas no dia 24 de fevereiro de 1932, pelo Decreto nº 21.076 do governo de Getúlio Vargas, que as mulheres puderam votar.

Mas, segundo uma das maiores especialistas em sufrágio feminino do Brasil Mônica Karawejczyk, as mulheres vinham empreendendo essas lutas por direitos políticos “desde os tempos do Império, estampadas em tratados e em tentativas individuais de se alistar para participar das eleições”.

Para a secretária nacional de mulheres do Partido Verde, Shirley Torres, “os partidos políticos são as principais ferramentas de participação política para quem quer concorrer a cargos eletivos. Só que, novamente, o fator sub-representação também recai nessas instâncias: as mulheres formam a maioria das filiadas, mas, ainda assim, ocupam menos espaços de poder do que os homens”.

Shirley Torres

Secretária Nacional de Mulheres do Partido Verde

Foto: Waldeilson Sousa

As mulheres são a maioria da população e, segundo o Tribunal Superior Eleitoral, a maioria do eleitorado (quase 80 milhões de um total de 147,5 milhões de eleitores no último pleito), porém apenas 290 das 9.204 mulheres que concorreram a um cargo eletivo em 2018 foram eleitas. Somente 15% do Congresso Nacional é feminino e apenas 12% dos prefeitos eleitos em 2020 são mulheres.

Assegurar o equilíbrio na participação de homens e mulheres na vida política do país caracteriza a verdadeira democracia, entretanto vemos que o quase centenário sufrágio feminino provocou poucas transformações substanciais no perfil de nossos representantes políticos.

Embora a conquista do direito de votar e de concorrer a um cargo eletivo tenha sido fundamental para as mulheres se inserirem no espaço público e político, ainda temos muitos obstáculos pela frente, “porque não basta votar, temos que ter mais mulheres na política para nos representar”, enfatiza Mônica Karawejczyk, professora da Escola de Humanidades – História, da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUCRS) e autora do e-book As filhas de Eva querem votar (EdPUCRS, 2020), resultado de sua pesquisa de doutorado em História, em entrevista concedida à Fundação Verde Herbert Daniel.

Leia a entrevista na íntegra.

Por Caroline Cardoso

Mônica Karawejczyk com seu livro As filhas de Eva querem votar (EdPUCRS, 2020)

Acervo pessoal

Fundação Verde: Como e quando começaram as demandas femininas pelo direito ao voto no Brasil? E pelo direito a concorrer nos pleitos eleitorais?

Mônica Karawejczyk: As demandas pelo voto feminino no Brasil podem ser encontradas desde os tempos do Império, estampadas em tratados (tais como o Tratado sobre a emancipação política da mulher e direito de votar, de 1868, encontrado recentemente pela historiadora Cristiane Ribeiro), bem como em tentativas individuais de algumas brasileiras de se alistarem para participar das eleições. Algumas conseguiam se inscrever, outras não; tudo dependia do parecer do juiz eleitoral que era consultado. No final do século XIX, encontramos essa pauta também nos jornais de uma dita imprensa feminina que estampava, entre receitas de bolo e moldes de corte e costura, pedidos de uma maior inserção das mulheres no mundo do trabalho e no mundo político, mas que acabaram não conseguindo sensibilizar os homens do poder. Só com o advento da República (1889), essa discussão tomou um vulto maior e mais organizado, com a aparição de associações femininas, tais como o Partido Republicano Feminino, liderado pela professora Leolinda de Figueiredo Daltro, em 1910, e a Liga pela Emancipação Intelectual da Mulher, presidido por Bertha Lutz, em 1920 (rebatizado, em 1922, de Federação Brasileira pelo Progresso Feminino). Por meio de pressões, elas recolocaram o debate do voto feminino na pauta da imprensa e do Congresso. Quanto à questão de concorrer aos pleitos, pelo menos aqui no Brasil, no que se refere à participação feminina, nunca foi dissociada do alistamento para participar das eleições, ou seja, se solicitava o direito de votar e de ser votada.

Fundação Verde: O que significa para as mulheres ter direitos políticos? Quais são esses direitos?

Mônica Karawejczyk: Os direitos políticos vão além do simples ato de votar e ser votada, mas não podemos negar ser esta a parte mais visível, por assim dizer, e que demandou muitos anos de luta para que as mulheres conquistassem esse direito. Ter tal direito assegurado para as mulheres faz parte de ser reconhecida como cidadã, de ter suas demandas levadas a sério, de ter o direito de se manifestar livremente e de exercer sua vontade na escolha dos seus representantes, um símbolo da democracia. Os direitos políticos, segundo o que explicita José Murilo de Carvalho, são os que dizem respeito à participação do cidadão no governo da sociedade. Consistem também na capacidade de se fazer demonstrações públicas e políticas, de organizar partidos, de votar e ser votado, o que, por muito tempo, foi vetado às mulheres simplesmente por serem mulheres. Conquistar tais direitos foi fundamental para as mulheres se inserirem no espaço público e político, mas ainda temos uma longa jornada pela frente, porque não basta votar, temos que ter mais mulheres na política para nos representar.

Fundação Verde: Que mulheres a senhora destaca na luta pelo sufrágio feminino em nosso país? Que importantes papeis elas desempenharam nessa luta?

Mônica Karawejczyk: Mencionei algumas dessas mulheres: Leolinda Daltro e Bertha Lutz, as mais conhecidas hoje em dia. Mas temos o exemplo de muitas outras, como Elvira Komel, uma advogada mineira com uma atuação muito grande no espaço público no final dos anos 1920 e início dos anos 1930; ou, ainda, Natercia da Cunha Silveira, a primeira mulher a se formar em Direito no Rio Grande do Sul, em 1926. Ela trabalhou na capital federal, Rio de Janeiro, por muitos anos. Todas elas estavam à frente de associações femininas e ocupavam o espaço público fazendo pressão pela demanda do voto. Também lembro o nome da Myrtes de Campos, a primeira mulher a exercer a advocacia no Brasil e que, em 1922, ao participar de um congresso jurídico, solicitou o direito de voto para as mulheres. Trouxe alguns nomes de algumas mulheres que deixaram algum rastro de sua atuação no espaço público apenas para exemplificar. Todas tiveram um papel nessa questão do voto feminino ao colocar o tema para o escrutínio da sociedade e fomentar o debate.

“Quero frisar que são muitas brasileiras que solicitaram tal direito e reconheço que desconhecemos seus nomes, seus rostos, suas vozes. Não as conhecemos de forma alguma, por isso precisamos de mais pesquisas para retirar do limbo seus nomes, suas lutas e suas histórias.”

Mônica Karawejczyk

Fundação Verde: Qual era o perfil das primeiras eleitoras brasileiras? E o atual?

Mônica Karawejczyk: Não tenho dados para afirmar com certeza quem eram as eleitoras do Brasil em 1933, a primeira eleição de que elas, asseguradas pela lei, puderam participar nacionalmente. Mas posso afirmar que eram mulheres alfabetizadas e que estavam muito interessadas em participar do pleito eleitoral. Só podemos fazer conjecturas sobre o perfil daquelas mulheres, mas tanto as que se alistaram para votar quanto as que se candidataram para participar das eleições foram mulheres que, apesar das limitações e barreiras que lhes eram impostas pelos costumes e pela cultura do período, de alguma forma, estavam questionando o status quo e querendo mudanças. Elas tiveram muita coragem em se expor e participar naquele momento. Muito se fala que as mulheres, em relação à política, seriam conservadoras ao extremo, apáticas e pouco interessadas, mas também são conjecturas. Não concordo com essa perspectiva e reafirmo que o espaço político não é receptivo para as mulheres. Independentemente da vertente (de direita, de esquerda, de centro-direita e de todos os matizes), elas não têm uma boa acolhida nesse espaço, que as marginaliza para um limbo ou para um nicho específico, segregadas a alguns temas de que elas deveriam se ocupar, como educação ou assistência social. Ainda temos um longo caminho para percorrer nesse sentido, ainda mais se nos damos conta de que, mesmo em pleno século 21, as mulheres têm dificuldade de se expor, de falar em público, de ter suas vozes reconhecidas como legítimas nesse mundo político tão misógino. As que se manifestam são taxadas como excessivas, histéricas, loucas e suas vozes (e demandas) muitas vezes são descritas como fora do lugar, irritantes etc. Quanto ao eleitorado feminino de hoje, ele é tão diverso quanto o masculino. Não me arrisco a dar palpites sobre essa questão, melhor perguntar para os cientistas políticos.

Fundação Verde: Qual tem sido o papel da legislação eleitoral nas conquistas políticas das brasileiras?

Mônica Karawejczyk: Foi através das leis que as brasileiras conseguiram, a muito custo, ter alguns direitos. Acredito ter sido essencial o fato de as nossas conquistas estarem asseguradas pela letra da lei e devemos lutar para que não sejam retiradas de forma alguma. Assim, apesar de avançarmos lentamente na conquista de direitos e na conscientização do papel feminino na sociedade, estamos presentes no espaço público e político e temos tentativas de aumentar a participação feminina na política com as leis das cotas, por exemplo. Afinal, sabemos das dificuldades encontradas pelas mulheres que querem participar desse espaço.

Fundação Verde: Em termos da igualdade de gênero na política, qual o significado de termos sido governados por uma mulher de 2011 a 2016?

Mônica Karawejczyk: A representatividade importa muito no meu entender. Temos tão poucos exemplos de mulheres ocupando altos cargos, não só no Brasil, mas no mundo todo. Acredito que o fato de termos tido a oportunidade de ter uma mulher governando o país também expôs toda a misoginia, o ódio e o desprezo que uma mulher pode receber ao ocupar um lugar que muitos ainda não consideram como legítimo de ser ocupado por outros que não homens, brancos, heterossexuais, pertencentes a uma certa elite que se considera a única representante de todos e todas os que moram no nosso país. Basta observar as falas dos homens do poder e da imprensa quando a presidenta Dilma sofreu o golpe em 2016.

Fundação Verde: Em suas pesquisas, a senhora se deparou com alguma evidência de uma suposta “diferença intrínseca” entre a forma de governar das mulheres e dos homens? Como a senhora avalia essa questão?

Mônica Karawejczyk: Nunca me deparei com essas questões nas minhas pesquisas até o momento, tenho me dedicado a tentar compreender como foi o processo que levou a incorporação das mulheres como eleitoras no Brasil e só bem recentemente estou pesquisando sobre as candidaturas, então não tenho dados para responder essa pergunta.

Fundação Verde: Qual é a maior dificuldade para as mulheres se fazerem mais presentes na vida política partidária brasileira?

Mônica Karawejczyk: A misoginia presente na nossa sociedade, o machismo explícito que observamos no meio político, a forma como elas são (des)tratadas nas suas demandas, as piadas e mentiras que são alardeadas contra as que têm a coragem de se colocar no espaço público e erguer sua voz. Também tem muitas mulheres que comungam com as ideias misóginas, conservadoras e patriarcais tão vigentes no momento, mas estas também se veem colocadas de lado quando se fala em participação ativa no mundo político.

“Temos ainda uma longa estrada para trilhar até que as mulheres possam ser vistas nesse espaço como legítimas representantes de todos, brasileiros e brasileiras.”

Mônica Karawejczyk

Fundação Verde: O que a senhora está pesquisando no pós-doutorado?

Mônica Karawejczyk: Minhas pesquisas no pós-doutorado têm se ocupado de duas frentes. Uma delas é sobre as primeiras eleições de que as brasileiras participaram, em 1933, 1934, 1935 e 1945. Quero identificar como foi essa participação, em um momento em que nem o voto nem o alistamento eram obrigatórios para as mulheres. Na outra frente de pesquisa, quero identificar e conhecer melhor as associações femininas que atuavam no espaço público no começo do século XX, principalmente a Federação Brasileira pelo Progresso Feminino (liderado pela Bertha Lutz) e a Aliança Nacional das Mulheres (cuja presidenta era a Natercia da Cunha Silveira). Inclusive já temos alguns resultados bem interessantes sobre elas. Tenho feito estas pesquisas em parceria com alunos de graduação da PUCRS, dos quais destaco a participação da Beatriz Berr Elias e do Giovane Casagrande (recém-formados historiadores), que têm me ajudado a desbravar essa história através da imprensa da época. Confesso que tem sido uma oportunidade muito interessante poder orientá-los como iniciantes na pesquisa científica ao mesmo tempo em que nos debruçamos sobre esse período tão rico e tão pouco explorado da nossa história.