No dia 25 de novembro, diferentes países se unem pelo fim da violência contra as mulheres, que representa um sério problema de segurança e saúde pública, na medida em que afeta a vida de boa parte das mulheres (assim como, de seus filhos, dependentes e familiares) e acarreta custos sociais e econômicos diversos.
Estima-se que o custo da violência contra as mulheres represente 2% do produto interno bruto global, cerca de 1,5 trilhões de dólares (ONU Mulheres, 2016).
Segundo a Pesquisa Visível e Invisível (Datafolha; Fórum Brasileiro de Segurança Pública, 2019)[1], em 2018, 4,7 milhões de mulheres foram vítimas de agressão física, ou seja, 536 mulheres a cada hora. Desse total, 76,4% afirmaram que o agressor era conhecido. O estudo aponta, ainda, que a maior parte das violências ocorreu dentro de casa (42%).
Vale notar que, embora a violência de gênero atinja todas as mulheres, independentemente de classe, raça, condição de deficiência etc., estudos apontam que mulheres negras e com deficiência têm mais chances de serem vítimas de violência doméstica e de feminicídio.
De acordo com o Anuário Brasileiro de Segurança Pública de 2020, 1.326 mulheres foram vítimas de feminicídio no ano de 2019. Desse total, 89,9% foram vítimas de companheiros ou ex-companheiros. O feminicídio é mais comum entre mulheres negras, sendo elas 66,6% das vítimas. Nos EUA e no Canadá, pesquisas revelam que mulheres com deficiência têm duas vezes mais possibilidades de serem vítimas de violência doméstica e familiar e de violência sexual do que mulheres sem deficiência (Chenoweth, 1996; Nosek, Howland, Hughes 2001).
A Convenção Interamericana para Prevenir, Punir e Erradicar a Violência contra a Mulher, denominada Convenção de Belém do Pará (1994), define violência contra a mulher como qualquer ação ou conduta, por condição de sexo feminino, que cause morte, dano ou sofrimento físico, sexual ou psicológico à mulher, tanto no âmbito público como no privado (art. 1º), ou seja, é qualquer violência cometida contra a mulher por sua condição de ser mulher.
Embora exista uma tendência em focar na violência doméstica e familiar contra as mulheres, por constituir uma de suas expressões mais comuns, a violência contra as mulheres abarca diferentes tipos, tais como:
- assédio sexual no trabalho;
- assédio sexual no transporte público e em espaços públicos;
- violência sexual (abuso sexual infantil, estupro por desconhecidos, estupros coletivos e corretivos);
- violência institucional;
- tráfico de mulheres;
- violência cibernética/na internet (p.e., pornografia de vingança, cyber stalking);
- violência obstétrica;
- feminicídio;
- violência política contra as mulheres.
É importante reconhecer que a violência contra as mulheres consiste num fenômeno multidimensional e multifacetado, relacionado a uma diversidade de fatores, a saber: individuais (p.e., presenciar violência doméstica quando criança, aceitação da violência); relacionais (p.e., uso da violência como resolução de conflitos familiares); comunitários (p.e., desemprego, isolamento da mulher); socioculturais (p.e., naturalização da violência contra as mulheres, aprovação da violência como forma de resolver conflitos cotidianos).
Tendo em vista a multidimensionalidade da violência contra as mulheres, sua eliminação (ou seu enfrentamento) requer iniciativas amplas, que não se restrinjam à assistência às mulheres e à denúncia de casos; mas que abarquem, também, a desconstrução das desigualdades entre homens e mulheres, a promoção de uma cultura do respeito, a garantia de direitos e a responsabilização dos agressores.
Assim, o enfrentamento da violência contra as mulheres requer a ação conjunta dos diversos setores envolvidos com a questão – saúde, segurança pública, justiça, educação, assistência social, entre outros –, visando propor ações que desconstruam as desigualdades entre homens e mulheres; combatam as discriminações e a violência contra as mulheres; promovam o fortalecimento das mulheres; garantam atendimento qualificado e humanizado às mulheres em situação de violência, assim como, a responsabilização dos agressores. Portanto, a noção de enfrentamento não se restringe à questão do combate, mas compreende também as dimensões da prevenção, da assistência e da garantia de direitos (Brasil, 2011).
A prevenção inclui ações educativas que disseminem valores éticos de irrestrito respeito às mulheres em suas especificidades (de raça/etnia, geracionais, de classe, entre outras) e de valorização da paz. As ações preventivas incluem campanhas que visibilizem as diferentes expressões de violência sofridas pelas mulheres e que rompam com a tolerância da sociedade frente ao fenômeno. No tocante à violência doméstica e familiar, a prevenção deve focar a mudança de valores, em especial no que tange ao silêncio quanto à violência contra as mulheres no espaço doméstico.
O combate à violência contra as mulheres inclui o estabelecimento e cumprimento de normas penais que garantam a responsabilização dos autores de violência contra as mulheres. No âmbito do combate, são propostas ações que garantam a implementação da Lei Maria da Penha, da Lei do Feminicídio e de outras leis relativas às diversas manifestações desse tipo de violência.
A “Garantia de Direitos das Mulheres” diz respeito ao cumprimento das recomendações previstas nos tratados internacionais na área de violência contra as mulheres, em especial aquelas contidas na Convenção de Belém do Pará, bem como à implementação de iniciativas que promovam o fortalecimento das mulheres e seu acesso à justiça.
A assistência se refere ao atendimento humanizado, qualificado e “não-revitimizador[2]” às mulheres em situação de violência, por meio da formação continuada de agentes públicos e comunitários; da criação de serviços especializados (casas da mulher brasileira, casas-abrigo, centros de referência, juizados de violência doméstica e familiar contra a mulher, defensorias da mulher); e, especialmente, do estabelecimento de uma rede integrada e articulada de parcerias para o enfrentamento da violência contra as mulheres. O pressuposto do trabalho em rede é fundamental para dar conta da complexidade do fenômeno e das múltiplas necessidades da mulher em situação de violência.
Por fim, é importante frisar que a Lei Maria da Penha, sancionada em 7 de agosto de 2006, trouxe grande visibilidade à violência doméstica e familiar contra as mulheres e muitos foram os avanços desde sua promulgação – p.e., criação de serviços especializados de atendimento à mulher (centros de referência de atendimento à mulher; defensorias, promotorias e juizados especializados, casas da mulher brasileira etc.); conscientização da sociedade; capacitação de agentes públicos; discussão do problema pela mídia; realização de campanhas nacionais; implementação de serviços de responsabilização dos autores de violência/agressores).
Mesmo com tantos avanços, ainda se faz necessária a existência de uma data para a conscientização dos atores sociais, dos governos e da sociedade, inclusive dos homens, no tocante à dimensão da violência contra as mulheres, às diferentes expressões desse tipo de violência e à necessidade de ações para sua eliminação e para a garantia de uma vida digna e sem violência para todas as mulheres, consideradas em sua diversidade racial, etária, de localização geográfica, entre outras.
Referências
BRASIL. Presidência da República. Secretaria de Políticas para as Mulheres. Política Nacional de Enfrentamento à Violência contra as Mulheres. Brasília: PR; SPM, 2011.
CONVENÇÃO Interamericana para Prevenir, Punir e Erradicar a Violência contra a Mulher. Convenção de Belém do Pará. Belém: CIDH; OEA, 1994.
DATAFOLHA; FÓRUM BRASILEIRO DE SEGURANÇA PÚBLICA. Visível e invisível: a vitimização de mulheres no Brasil. São Paulo: Datafolha; FBSP, 2019.
FÓRUM BRASILEIRO DE SEGURANÇA PÚBLICA. Anuário Brasileiro de Segurança Pública 2020. São Paulo: FBSP, 2020.
ONU Mulheres; Ministério das Mulheres, da Igualdade Racial e dos Direitos Humanos; Ministério da Justiça. Diretrizes para investigar, processar, julgar as mortes violentas de mulheres. Brasília: Imprensa Nacional, 2016.
[1] A pesquisa foi realizada pelo Datafolha a pedido do Fórum Brasileiro de Segurança Pública. O universo da pesquisa é a população adulta brasileira de todas as classes sociais com 16 anos ou mais. A abrangência é nacional, incluindo regiões metropolitanas e cidades do interior de diferentes portes, em todas as regiões do Brasil. As entrevistas foram realizadas em 130 municípios de pequeno, médio e grande porte, no período de 4 a 5 de fevereiro de 2019. A amostra total nacional foi de 2.084 entrevistas. A amostra total de mulheres foi de 1.092 entrevistas.
[2] O atendimento “não-revitimizador” é caracterizado por atitude compreensiva, empática e solidária; respeito à liberdade e à autonomia das escolhas e decisões da mulher; garantia de privacidade e confidencialidade; garantia da segurança da mulher; escuta isenta de preconceitos, pré-julgamentos e discriminações; trabalho intersetorial e em rede.
Taís Cerqueira Silva
Psicóloga clínica com mestrado em estudos sobre a mulher pela Universidade de Lancaster e PhD em políticas sociais pela Universidade de Bristol. especializada no atendimento a mulheres vítimas de violência e na elaboração de políticas públicas de enfrentamento à violência de gênero.
*Este artigo apresenta a opinião da autora e é de sua inteira responsabilidade.