Havia algo deliciosamente fortuito na queda de energia elétrica no norte do Quênia em 27 de maio, enquanto o juiz J.A. Makau lia sua muito aguardada decisão em um caso que poderia alterar o status das mulheres e das meninas no Quênia, talvez em toda a África.
Mas as luzes voltaram. E o juiz no tribunal superior em Meru declarou: “Ao não fazer cumprir as leis existentes, a polícia contribuiu para o desenvolvimento de uma cultura de tolerância com a violência sexual generalizada contra meninas e impunidade”.
Culpado.
Uma história extraordinária de tenacidade e coragem, inteligência e sobrevivência, levou a essa vitória.
Três anos antes, 160 meninas com idades entre 3 e 17 anos processaram o governo do Quênia por fracassar em protegê-las do estupro. Agora elas fizeram história: por meio de uma ação constitucional –responsabilizando o Estado pelo tratamento dado pela polícia aos casos de estupro– as meninas garantiram para si mesmas acesso à Justiça e proteção legal contra estupro para todas as 10 milhões de meninas no Quênia.
Uma criança é estuprada a cada 30 minutos no Quênia. Um dos motivos é a ideia demente de milhares de homens na África sub-Saara de que fazer sexo com uma criança os curará do HIV e Aids. De fato, a crença é de que quanto mais jovem for a menina, mais forte será a cura.
Apesar de existir leis adequadas no código penal queniano para proteção das meninas, há quase total impunidade para os perpetradores. As leis não são aplicadas e a prática do estupro está em ascensão.
Em 90% dos casos, as vítimas foram estupradas por pessoas que conheciam –pais, tios, irmãos, vizinhos, professores, padres– as mesmas pessoas que tinham a tarefa de protegê-las.
Quando a menina não morre vítima de seus ferimentos, ela enfrenta o abandono. Ninguém deseja ter nada a ver com uma menina estuprada. Ela perde sua chance de ir à escola. Ela provavelmente é contaminada pelo HIV ou outra doença sexualmente transmissível. Ela pode engravidar. Sua infância acaba. Ela se torna pobre, sem saúde e carente.
Foi preciso coragem e tenacidade para as 160 meninas enfrentarem um sistema que fracassou com elas. Em 11 de outubro, quando o caso chegou ao tribunal em Meru, os advogados delas marcharam pelas ruas, do abrigo onde as garotas estavam até o tribunal. As garotas também queriam participar da marcha, mas foram instruídas que a identidade delas precisava ser protegida e que deviam permanecer no abrigo. Não adiantou nada, disseram os advogados. Elas marcharam ao lado de seus advogados cantando, “Haki yangu” –”eu exijo meus direitos” em suaíli.
Os guardas no tribunal fecharam os portões com a aproximação das meninas. Mas elas escalaram a cerca ainda cantando “Haki yangu” e então começaram a rir diante da inversão dos papéis em frente delas.
Elas diziam umas às outras: “Olhem, esses homens que nos feriram, que nos deixaram envergonhadas, agora estão com medo de nós!” Logo os portões foram abertos e as meninas e seus advogados entraram no tribunal.
O caso teve início de fato quando advogados do Quênia, Maláui, Gana e do Canadá se reuniram na Faculdade de Direito Osgoode Hall, em Toronto, e a discussão deles se voltou para o aumento alarmante do estupro no Quênia.
A ação foi ideia de Fiona Sampson, uma canadense que dirige uma organização chamada Equality Effect, que usa a lei internacional de direitos humanos para melhorar as vidas de meninas e mulheres. Ela se uniu com Mercy Chidi, diretora de um abrigo em Meru chamado Ripples International. Juntas, elas sabiam que era hora de enfrentar o problema: a impunidade dos estupradores e o fracasso da Justiça em condená-los.
A jornada realizada por essas crianças envolve garotas ousando quebrar tabus e se manifestando sobre ataques sexuais. Envolve mulheres advogadas dos dois lados do mundo apoiando crianças na busca por justiça. Envolve crianças para as quais foi dito que não tinham direitos, mas que insistiram que tinham. E é a reação pela qual mulheres e meninas de toda parte estavam esperando.
Quarenta e oito horas após a decisão da corte, Fiona Sampson soube de pessoas em meia dúzia de países que queriam fazer o mesmo. É como se uma prática de séculos tivesse chegado ao fim.
*Sally Armstrong, uma jornalista canadense, é autora, mais recentemente, de “Ascent of Women: Our Turn, Our Way –A Remarkable Story of World-Wide Change”
Tradutor: George El Khouri Andolfato
Fonte: Herald Tribune