Data é um convite à reflexão sobre cultura de paz, compreensão, tolerância e resistência
A Organização das Nações Unidas (ONU) instituiu o 2 de outubro como o Dia Internacional da Não Violência em homenagem ao nascimento de Mahatma Gandhi, líder da resistência não violenta e do movimento de independência indiana. O maior objetivo da ONU é “assegurar uma cultura de paz, tolerância, compreensão e não violência”.
O exemplo de renúncia e humanismo do pacifista indiano, assassinado a tiros em 1948, tem inspirado movimentos pela não violência em todo o mundo, como a Caravana da Paz Brasil, instituída em 2020, durante a pandemia, por Lígia Splendore, psicóloga especializada em Psicologia Transpessoal na Iluminar e idealizadora do Repensando a Loucura.
Ela conta que foi inspirada pelo Caravan of Unity – Co-Creating Europe, movimento coletivo pela paz, pela democracia e pela solidariedade. Convidou amigos e conhecidos interessados no desenvolvimento de uma consciência planetária para a paz e juntaram seus talentos pessoais em prol desse objetivo.
“Quando propusemos o movimento da Caravana da Paz Brasil, buscamos o entendimento da nossa diversidade e a acolhida de todas as nossas diferenças. O oposto da paz não é a guerra. O oposto da paz é a estagnação. A paz é ação não violenta, portanto demanda uma luta do bom combate.” Lígia Splendore
Lígia Splendore, fundadora da Caravana da Paz Brasil
Crédito: Divulgação
Telma Delmondes, consultora em desenvolvimento humano e organizacional da Gesthum, alerta que o diálogo é instrumento de entendimento universal urgente e necessário para a construção de uma cultura de paz e que, ao se falar em cultura de paz, está implícita a cultura da não violência.
Segundo ela, o conflito pode começar com diferenças de pontos de vista. A dificuldade de escutar o outro e a relutância em ceder são combustíveis para o conflito. Se cada pessoa envolvida em uma situação quer apenas estar certa ou mostrar que tem a verdade, e não chegar a um acordo ou solução, essa situação certamente terá como desfecho o conflito.
“Quando você sabe que um ponto de vista é apenas a vista de um ponto, sua mente vai ficar alerta e, se você tem pretensão de ter sua fala validada e considera o outro como seu interlocutor válido e competente, ocorre o diálogo.” Telma Delmondes
Telma Delmondes da Gesthum e da Caravana da Paz Brasil
Crédito: Divulgação
Ligia também considera que o conflito não é algo negativo, mas necessário para que se possa aprender com as diferenças e promover a verdadeira união. Isso se dá, obviamente, quando as partes envolvidas em um atrito estão abertas a estabelecer diálogo, e não interessadas apenas em ter razão. “Os conflitos são necessários para a nossa evolução. Eles existem para nos ajudar nesse processo de transformação planetária.”
O poder (auto)transformador da não violência
Para os defensores de uma cultura de paz, somos todos violentos e o conflito é inerente a nossa condição humana. Porém, todos podemos aprender a lidar com isso de uma forma mais pacífica. Não existem fórmulas mágicas. É um exercício diário.
Recorrer à violência ou à não violência para solucionar conflitos pode parecer apenas uma questão de escolha, mas essa escolha só é possível se as pessoas tiverem consciência das opções. Então, precisamos ser alertados para o poder (auto)transformador da não violência. Por isso, é tão importante uma data para celebrá-la.
A vida do próprio Gandhi, que considerava a não violência como mais poderosa do que qualquer arma já criada pelo homem, pode ser tomada como exemplo. Quer dizer, a não violência não é uma estratégia de que lançamos mão ora sim, ora não. Também não deve ser entendida como passividade e docilidade. Ela é uma atitude positiva perante a vida, que permite a revelação do respeito, do amor, da compreensão, da gratidão, da compaixão e da preocupação genuína com o outro.
A mediadora de conflitos, especialista em Comunicação Não Violenta (CNV) e fundadora do Instituto Tiê, Carolina Nalon, explica que o simples fato de estarmos em relação faz com que o conflito exista. Podemos identificá-lo na tensão entre o que queremos e o que podemos ou entre o que queremos e o que o outro faz. E nossa forma de lidar com essa tensão pode ser não violenta.
Ela conta que, após três horas de uma reunião de condomínio para distribuição de vagas de garagem, foi informada de que não tinha direito a essa escolha e sequer poderia figurar na ata da reunião por ser inquilina. Apesar da raiva, retirou-se do local sem discussão. No elevador, foi desafiada por sua companheira a tentar resolver a questão aplicando as técnicas de CNV que vinha aprendendo. Retornou à reunião, conversou com a síndica e conseguiu escolher uma vaga.
“Ela [a síndica] fez algo que estava dentro das possibilidades dela. Eu também consegui algo que atendia minha necessidade. A chance de ficar só no ressentimento era muito alta se a gente não tivesse conversado. Essa é uma história do dia a dia que representa bem o que a prática da CNV traz: é esse desatar os nós. Fizemos o que era possível fazer naquela relação naquele momento.” Carolina Nalon
Carolina Nalon, fundadora do Instituto Tiê
Crédito: Divulgação
Entender as violências para ser não violento
Falar da não violência implica entender o que é violência. Pode parecer um conceito simples quando se consideram emprego abusivo da força contra alguém, danos à integridade física, abusos de todo tipo. E não é difícil entender o porquê do alcance semântico apenas desse tipo de violência.
Essa percepção de violência apenas como tiros, bombas, porradas e guerras é não só disseminada, mas também reforçada – e até naturalizada – pela cultura. Ela está em filmes, noticiários, livros, músicas, nas ruas e nas redes sociais.
Um outro tipo mais sutil de violência é a estrutural, desferida pelas instituições aos sujeitos sob seu domínio. Ela é histórica e socialmente construída. A gravidade dessa violência e seus impactos na paz, aponta Telma, se dão por não estar associada a um sujeito, como a violência física ou verbal. Ela está na base do próprio sistema capitalista. Então, uma discussão sobre violência precisa considerar não só as violências visíveis, físicas ou verbais, mas também essa violência estrutural.
Precisamos nos humanizar
Isso tudo começou com “o processo de coisificação do outro para dar conta do sistema de dominação”, aponta Carolina. Com o início da agricultura, os grupos humanos, antes nômades, passaram a se fixar. Nesse momento, surge o sentimento de posse, de propriedade – da terra, das plantas, dos animais até chegar o momento em que seres humanos passaram a possuir outros seres humanos. O Brasil, por exemplo, foi erguido sob bases extremamente violentas de escravização e exploração da natureza e das pessoas.
Esse processo foi ganhando contornos ainda mais assustadores com o passar do tempo, no entanto chegamos a um ponto em que “essa forma de viver que a humanidade vem seguindo por muitos anos não se sustenta mais. Precisamos de uma consciência planetária, de uma evolução enquanto ser humano”, assegura Lígia.
Também é possível ver o rosto desumano e nada constrangido do capitalismo por trás dos sistemas de Justiça. Para Carolina, “não é um sistema que pune a violência. É um sistema que pune quem faz algo que fira a propriedade privada”. Então, essa concepção relativiza a violência – e até a justifica –, porque “se alguém faz algo ruim contra o que é meu, isso justifica a violência em relação a esse alguém; quer dizer, minha causa para ser violento é justa. Só que quem vai dizer que a própria causa não é justa?”.
Esse modus vivendi capitalista baseado numa visão materialista da vida – obter lucro, ter bens, explorar recursos naturais e pessoas – vem sendo retroalimentado por violências e desigualdades. Ser visto apenas como um número ou um meio para se atingir algo – lucro, por exemplo – é uma violência, ainda que sutil, resultante da supervalorização do ter. Assim, é muito importante compreender que capacitismo, racismo, sexismo, aporofobia, lgbtfobia e todas as formas de exclusão e negação da diversidade são resultados da desumanização do outro.
“A não violência é um olhar de humanização radical do outro. As pessoas são um fim nelas mesmas. Elas não são um meio para que eu atinja algo. A partir do momento que a gente começa a ter esse olhar, muitas das nossas atitudes podem mudar. A gente começa a ser provocado para conseguir balançar essas estruturas sociais opressoras que regem o nosso modelo de sociedade.” Carolina Nalon
Resistência não violenta
Para conseguir mudanças e rejeitar toda e qualquer forma de submissão e passividade, precisamos resistir. No entanto, a exemplo de Gandhi, nossas lutas por justiça social não precisam ser travadas pela força das armas ou da porrada. Cada indivíduo que procura edificar sua luta sob valores humanistas e não violentos estará se somando a todos que se guiam pela cultura de paz, que tem um poder agregador.
“Precisamos deixar de pensar que uma pequena ação que parta de um indivíduo é muito pequena. Ela não é. Nenhuma ação é pequena. Às vezes, nos sentimos como uma formiguinha, mas precisamos continuar fazendo, olhando, sorrindo, conversando”, adverte Lígia.
A não violência praticada individual ou coletivamente pode constituir uma ação de resistência ao poder do dinheiro e da política, que tem acirrado as desigualdades, os conflitos, o ódio entre as pessoas e o desrespeito à natureza. E uma das formas de se construir essa resistência é unindo e educando os seres humanos.
Carolina ressalta a necessidade de uma visão sistêmica do mundo a fim de evitar uma postura assistencialista, que pode, por exemplo, resolver momentaneamente o problema de insegurança alimentar de alguns com cestas básicas compradas em hipermercados e, com isso, provocar a derrocada de comércios locais.
“Em comunidade, em grupo, as pessoas vão formando uma resistência. Um movimento muito forte e não violento são as greves. Os trabalhadores entram em greve para que os capitalistas percebam o quanto eles dependem dos trabalhadores, e não só o contrário. É preciso formar essas resistências educando as pessoas para isso”, conclui Carolina.