A cada segundo, 17 animais silvestres são mortos por veículos em vias e rodovias brasileiras
A Semana de Proteção à Fauna é celebrada anualmente de 4 a 10 de outubro no Brasil como uma tentativa de direcionar a atenção para a fauna brasileira e sua importância no desenvolvimento de ecossistemas saudáveis. Muitas são as ameaças aos animais no país – desmatamentos, queimadas, poluição, caça ilegal, comércio ilegal, maus-tratos, atropelamentos e outras – e o efeito cumulativo delas tem resultado no declínio de populações silvestres, muitas ameaçadas de extinção.
BR-262 em Mato Grosso do Sul
Foto: Projeto Bandeiras e Rodovias/ICAS.
Segundo o atropelômetro do Centro Brasileiro de Estudos em Ecologia de Estradas (CBEE), com sede na Universidade Federal de Lavras (Ufla), a cada segundo, 17 animais silvestres morrem atropelados no país. Do primeiro dia de 2021 até o fechamento desta matéria, cerca de 327 milhões de animais de pequeno porte (sapo, cobra, lagarto, ave), mais de 33 milhões de médio porte (gambá, macaco, quati, tatu) e quase cinco milhões de grande porte (onça, capivara, anta, preguiça, tamanduá-bandeira) tinham morrido no Brasil.
Esses números podem ser ainda mais elevados, uma vez que não se sabe ao certo o impacto das estradas nas mortes de invertebrados (borboletas, aranhas, mosquitos e outros insetos), nem se tem acesso a todas as ocorrências de acidentes com vertebrados.
Erica Naomi Saito, bióloga especialista em ecologia de transportes do Instituto de Conservação de Animais Silvestres (Icas), em Campo Grande, Mato Grosso do Sul, e membro da Rede Brasileira de Especialistas em Ecologia de Transportes (Reet Brasil), ressalta que uma combinação mortífera para os animais que vivem nas redondezas das estradas é o alto fluxo de veículos, a alta velocidade e a imprudência de alguns, as rodovias sem medidas de prevenção às colisões, o descarte de resíduos e as características da fauna da região – como a existência de espécies ameaçadas, de populações animais reduzidas e os tipos de bichos que cruzam as vias.
“Perder um animal representa um impacto muito grande.”
Erica Saito
A bióloga destaca como perigosa a rodovia MS-040, que liga Campo Grande a Santa Rita do Pardo, no Mato Grosso do Sul, com muitos atropelamentos de animais de grande porte como anta e tamanduá-bandeira, este ameaçado de extinção. Ela cita a BR-262, também no Mato Grosso do Sul, que liga Campo Grande a Corumbá; em Goiás, ela aponta as rodovias que atravessam a Chapada dos Veadeiros e, no Rio Grande do Sul, a estrada que corta a Estação Ecológica do Taim. “Tem a BR-319, que liga Manaus a Porto Velho. Em um dia que fiz o monitoramento a pé, eu achei, em um quilômetro, mil sapinhos mortos. É muita coisa.”
Tiago de Carvalho Leite
Foto: Instituto ProFauna.
Para Tiago de Carvalho Leite, biólogo especializado em ecologia e monitoramento ambiental na Atlantic Observadores de Bordo e voluntário do Instituto ProFauna, em Ubatuba, São Paulo, quando se fala em atropelamento de animais silvestres no Brasil, existe um problema generalizado, pois “menos de 15% das rodovias têm estrutura para diminuição dos impactos dos atropelamentos de fauna”.
Desde 2005, todo domingo, Tiago Leite realiza monitoramento na parte da BR-101 que cruza o litoral norte de São Paulo. Essa é uma das rodovias mais importantes do país com quase cinco mil quilômetros de extensão – vai de São José do Norte, Rio Grande do Sul, até Touros, Rio Grande do Norte. Segundo ele, a BR-101 é, também, uma das estradas que mais impactam a biodiversidade brasileira, por dois motivos associados: ela passa pela Mata Atlântica, um importante hotspot para a conservação, abrigo de uma abundante e diversa fauna silvestre, e está na região litorânea, onde acontece o escoamento da maior parte dos produtos para o interior e para o exterior do país, o que demanda um constante tráfego de veículos pesados.
Mãe e filhote de tamanduá-bandeira atropelados e mortos na BR-262 em Mato Grosso do Sul
Fotos: Erica Naomi Saito/Projeto Bandeiras e Rodovias.
“Fizemos um estudo de crescimento populacional e vimos que os atropelamentos nas rodovias cortam o crescimento populacional dos tamanduás-bandeiras pela metade. Então, essa ameaça do atropelamento é maior do que outras ameaças como caça, desmatamento, incêndio. É muito impactante!” Erica Saito
Quando um animal é atropelado e não morre, mas fica ferido, ele pode fugir para a mata sem atendimento, talvez até morrer depois em decorrência do machucado, ou pode ser atendido e passar por tratamento e reabilitação. Para esses casos, seria importante que os governos investissem mais nos Centros de Triagem e Reabilitação de Animais Silvestres (Cetas). Ligadas ao Ibama, essas unidades são responsáveis pelo manejo de animais silvestres recebidos de resgates, fiscalizações ou acidentes. Os bichos reabilitados são reintegrados ao ambiente natural.
Medidas de prevenção
Uma das mais importantes ações preventivas de atropelamento de fauna é a educação ambiental. A população precisa ser sensibilizada para o problema a fim de que cobre dos governantes medidas mais efetivas de prevenção e se envolva de fato na luta para a conservação da biodiversidade.
Em algumas regiões, existem animais de hábitos noturnos, como tamanduá-bandeira, capivara e anta. Então, a população local pode ser conscientizada sobre isso para, por exemplo, “evitar dirigir à noite, que é uma medida que tem se mostrado muito eficiente, porque o menor tráfego de veículos reduz os riscos”, explica Tiago Leite.
Voluntários do Instituto ProFauna em manejo de fauna silvestre atrolelada
Foto: Instituto ProFauna.
Outra medida importante é a mudança de comportamento nas estradas: observar placas, trafegar na velocidade da via, não realizar ultrapassagens arriscadas e cumprir as demais leis de trânsito.
Também deve-se evitar a construção de rodovias próximas a unidades de conservação, pois os impactos negativos das estradas na biodiversidade são potencializados nessas áreas. Um diagnóstico nacional dos impactos de rodovias nas unidades de conservação, realizado entre 2018 e 2019 pelo professor Alex Bager, do CBEE, constatou que mais de 80% das unidades de conservação cruzadas por rodovias constataram atropelamento de fauna.
Vídeo gravado por um motorista em rodovia de Bertioga, litoral de São Paulo, mostra o trânsito parado para um bicho-preguiça atravessar (Site Só Notícia Boa, 2019).
Medidas de mitigação
As medidas de mitigação mais comuns no país são as placas de sinalização, que têm baixa eficiência comprovada em outros países. Segundo Erica Saito, o Icas está conduzindo um estudo no Mato Grosso do Sul para testar a eficiência das placas naquela região. Apesar de ainda estar em andamento, a pesquisa aponta que, devido às placas, “existe uma melhora na atenção dos motoristas, mas ainda não fechamos esse estudo. Então, ainda não conseguimos saber qual é a porcentagem de eficiência dessa medida”.
Além das placas que, para Tiago Leite, “deveriam ser customizadas de acordo com o perfil de cada trecho ou região”, outras medidas mitigatórias podem ser as passagens subterrâneas ou aéreas, refletores, cercas guia, redutores de velocidade.
Tanto Erica Saito quanto Tiago Leite enfatizam que qualquer ação mitigatória desses atropelamentos deve ser planejada com base em um diagnóstico preciso das condições em que será desenvolvida sob pena de desperdício de dinheiro e tempo. Esse diagnóstico precisa considerar extensão total da rodovia, biomas cortados por ela, animais que vivem nas proximidades, velocidade permitida e sinalização, condições de tráfego, entre outras.
“Não adianta nada gastar milhões em termos de infraestrutura para mitigar o atropelamento de fauna se não houver um trabalho associado de educação ambiental, de sensibilização dos motoristas.”
Tiago Leite
De acordo com Tiago Leite, quando uma medida mitigatória é implementada, ela não extingue os atropelamentos. Na verdade, toda medida empreendida – seja preventiva, seja mitigatória – precisa ser monitorada e ter sua efetividade constantemente avaliada para, caso não se tenha o efeito desejado, outras providências sejam tomadas.
Uma alternativa política
Por ser um país continental e ter uma malha viária extensa, o controle das informações acerca dos atropelamentos da fauna silvestre é incipiente no Brasil. O monitoramento realizado por voluntários de organizações não governamentais e da sociedade civil não tem sido suficiente e as ações governamentais de monitoramento e prevenção caminham a passos lentos.
Deputado Célio Studart (PV-CE)
Foto: Câmara dos Deputados.
Embora nossa legislação ambiental seja uma das mais avançadas do mundo, não há dispositivo para regular os procedimentos em casos de atropelamentos de fauna. Na tentativa de preencher essa lacuna, foi apresentado, pelos deputados Ricardo Izar (PSD-SP) e Celso Studart (PV-CE), o Projeto de Lei nº 466/2015, parado na mesa diretora da Câmara dos Deputados
O PL propõe a adoção de medidas que assegurem a circulação segura de animais silvestres em nossas estradas, rodovias e ferrovias. Segundo o deputado Celso Studart, “os tópicos que nosso projeto defende são estudos de viabilidade técnica e ambiental, adoção de cadastro nacional, fiscalização e monitoramento, implementação de medidas que possam, de fato, combater esses atropelamentos e promover a educação ambiental no território brasileiro para não termos uma estatística tão difícil como essa”.
Ciência cidadã como grande aliada
A dificuldade para monitorar os casos de atropelamento de fauna silvestre tem levado ao emprego da ciência cidadã na ecologia de estradas. Baseada na parceria entre cientistas e cidadãos, esse movimento tem envolvido milhares de voluntários na coleta de dados e informações sobre atropelamentos de fauna silvestre para serem analisados pelos cientistas.
Aqui no Brasil, contamos com o aplicativo Urubu Mobile, do Sistema Urubu, lançado em abril de 2014 pelo Centro Brasileiro de Estudos em Ecologia de Estradas. Só na Google Play, já foram mais de 50 mil downloads. Qualquer pessoa pode baixá-lo gratuitamente e se cadastrar para fazer parte da rede de conservação da biodiversidade.
É relativamente simples de usar. Toda vez que uma pessoa encontra um animal atropelado, ela tira uma foto com o próprio aplicativo e, por georreferenciamento, as coordenadas do local da colisão e o usuário são identificados pelo sistema, que vai reunindo esses dados em um grande banco.
Entretanto, os especialistas alertam para o fato de que não se deve tentar remover um animal ferido ou morto em decorrência de um atropelamento. Por estar acuado, não se sabe a reação que ele poderá apresentar. Se morto, ele pode transmitir algum tipo de doença. A medida indicada é avisar a concessionária responsável pela rodovia ou a Polícia Militar Ambiental pelo 190, ou, ainda, a Polícia Rodoviária Federal pelo 191.