Como o avanço das pautas conservadoras nos parlamentos do país tem prejudicado a efetivação de conquistas da comunidade LGBTQIAPN+
Atualmente, há 15 projetos de lei contrários à adoção da linguagem neutra tramitando na Câmara Federal, segundo matéria do Metrópoles. Em dezembro de 2021, havia 34 propostas com o mesmo teor tramitando em assembleias legislativas de 19 estados e do Distrito Federal, segundo levantamento feito pela Agência Diadorim. “Todas querem impedir a variação na norma gramatical para além do binário masculino e feminino.”
Em fevereiro de 2021, o então deputado estadual Nikolas Ferreira (PL) apresentou o Projeto de Lei 54 à Assembleia Legislativa de Minas Gerais com a proposta de proibir o uso da linguagem não binária ou linguagem neutra nas escolas de Belo Horizonte.
Na justificativa, o deputado afirma que a linguagem neutra “atende a uma pauta ideológica específica que tende a segregar ainda mais as pessoas”, além de dificultar o aprendizado de pessoas disléxicas e surdas.
Em outubro de 2021, o governador de Rondônia, Marcos Rocha (União), aprovou e sancionou a Lei nº 5.123, proveniente do Projeto de Lei 948, de autoria do deputado Eyder Brasil (PSL), aprovado pela Assembleia Legislativa de Rondônia.
Segundo o texto, fica “expressamente proibida a linguagem neutra na grade curricular e no material didático de instituições de ensino públicas ou privadas, assim como em editais de concursos públicos”.
De acordo com o governo do estado, um dos objetivos da proibição é instituir “medidas protetivas ao direito dos estudantes ao aprendizado da língua portuguesa de acordo com a norma culta”.
Em reportagem do G1, o presidente da Comissão de Diversidade Sexual e de Gênero LGBTQIA+ da Ordem dos Advogados do Brasil de Rondônia (OAB-RO), Cleverton Reikdal, manifestou-se sobre a inconstitucionalidade da lei por violar o direito ao desenvolvimento educacional pleno e cita o educador e patrono da educação brasileira Paulo Freire: “o ensino deve ser emancipador”.
O avanço do conservadorismo
Além das tentativas de deputados brasileiros de vários estados de proibir o emprego da denominada linguagem neutra em instituições públicas e privadas de ensino, em concursos e em documentos oficiais, membros do governo federal na gestão Bolsonaro também se demonstravam publicamente favoráveis a esse tipo de medida.
Um deles foi o ex-secretário especial de Cultura Mário Frias. Em 23 de julho de 2021, ele usou o Twitter não só para recriminar, mas também para ameaçar com “medidas” o Museu da Língua Portuguesa por ter utilizado a palavra “todes” em seu perfil oficial nas redes sociais.
Postagem na conta oficial do Museu da Língua Portuguesa que gerou indignação no ex-secretário de Cultura do governo Bolsonaro Mário Frias no Twitter/Reprodução Twitter.
Postagens do ex-secretário de Cultura de Bolsonaro Mário Frias sobre linguagem neutra utilizada em mensagem de reinauguração do Museu da Língua Portuguesa no Twitter/Reprodução Twitter.
“O Governo Federal investiu 56 milhões de reais nas obras do Museu da Língua Portuguesa para preservarmos o nosso patrimônio cultural, que depende da preservação da nossa língua. Não aceitarei que esse investimento sirva para que agentes públicos brinquem de revolução. Tomarei medidas para impedir que usem o dinheiro público federal para suas piruetas ideológicas. Se o governo paulista se comporta como militante, vandalizando nossa cultura, não o fará com verba federal”, escreveu Mário Frias em sua conta do Twitter.
Não por coincidência, todos os projetos de lei que visam proibir a linguagem neutra são de parlamentares da direita ultraconservadora e ligados, de alguma forma, ao ex-presidente Jair Bolsonaro.
De acordo com a Agência Diadorim, dos 34 projetos com esse teor mapeados até 2021, 13 são de políticos do PSL, partido pelo qual Bolsonaro se elegeu presidente em 2018.
Os resultados também mostraram que 31 projetos são de autoria de homens (88,57 % dos casos): oito de deputados militares (sargentos, tenentes, capitães ou delegados), um de pastor e um de apóstolo.
Destacam-se os projetos que proíbem o emprego da linguagem neutra na educação, 28, e na administração pública, 16. Nas duas mais importantes cidades do eixo cultural do país, Rio de Janeiro e São Paulo, há um projeto tramitando em cada estado e a proibição estende-se a produções culturais.
De conquista em conquista
Desde 2014, a ativista trans Neon Cunha vinha travando batalha para retificar seus documentos. Exigiram que ela entrasse na justiça com um laudo médico atestando a transgeneridade.
A indignação pelas várias tentativas frustradas pelo preconceito e pela burocracia do Estado a levou a solicitar morte assistida junto à Organização dos Estados Americanos (OEA) se não tivesse seu direito à alteração dos documentos respeitado.
Ela foi a primeira mulher trans a falar na OEA e declarou à reportagem do UOL que não tinha nada a ganhar ou a perder quando tomou a decisão.
“Imagina limitar no limite do limite do limite a vida de uma pessoa. Eu acreditava na possibilidade de morte assistida e não tinha nada a ganhar ou perder. Já tinha até o método que eu queria, era injeção letal sem dor nenhuma.”
Neon Cunha em reportagem do UOL
O pedido de morte assistida de Neon Cunha foi negado pela OEA, mas ela garantiu duas grandes conquistas: retificação dos documentos e jurisprudência para resguardar o direito de alteração dos documentos para todas as pessoas trans no Brasil.
Tire suas dúvidas sobre a retificação de documentos aqui e aqui.
Em 2017, Michel Temer sancionou a Lei nº 13.484/2017, que dispõe sobre os registros públicos no país. Desde 1º de março de 2018, é possível a alteração do nome e do gênero no registro civil de transexuais sem a necessidade de cirurgia de redesignação sexual ou ação judicial.
O direito foi reconhecido pelo Supremo Tribunal Federal (STF). E, de acordo com o Provimento nº 73/2018 do Conselho Nacional de Justiça (CNJ), a retificação está disponível em qualquer cartório de registro civil do país.
Entretanto, esse direito continua sendo desrespeitado e dificultado pela burocracia, pelos custos e pela falta de preparo dos cartórios. É o que mostra o Diagnóstico sobre o acesso à retificação de nome e gênero de travestis e demais pessoas trans no Brasil (Distrito Drag, 2022), da Associação Nacional de Travestis e Transexuais (Antra).
O documento aponta como dificultadores a falta de uniformidade nos procedimentos, em especial para a isenção de taxas para a população hipossuficiente, a exigência de documentos que não estão previstos nas normativas e a transfobia nos cartórios.
“O que não tem nome não existe”
A diretora-executiva da Diversity BBox, Pri Bertucci, e a psicóloga Andrea Zanella lançaram, em 2015, o Manifesto Ile para uma Comunicação Radicalmente Inclusiva. Além de reivindicar para si a criação do pronome neutro “ile”, as autoras vão de encontro ao que parlamentares ultraconservadores em todo o país vêm defendendo: elas lutam pela inclusão do gênero não binário na língua portuguesa e pelo uso do pronome “ile” como alternativa à usual generalização no masculino.
Em maio de 2022, Pri Bertucci escreveu em sua coluna no site do Instituto SSex BBox que a comunidade LGBTQIAPN+ não pretende impor uma mudança na língua portuguesa e afirmou que “o que não tem nome não existe”.
“O que não tem nome não existe. Como você vai criar uma política pública para pessoas não binárias ou intersexo se a gente nem sabe que elas existem na sociedade? Se elas nem existem no nosso vocabulário?”
Pri Bertucci no site do Instituto SSex BBox
Na Feira Trans 2022 da Quinta Marcha do Orgulho Trans de São Paulo, em julho do ano passado, Pri Bertucci lançou o Dossiê de Linguagem Neutra e Inclusiva no Brasil com selo da Diversity BBox e do Instituto SSex BBox, empresas especializadas em equidade social e promoção da diversidade em corporações e instituições.
Segundo a publicação, o objetivo é educar as pessoas acerca da linguagem neutra e inclusiva no Brasil. Na ocasião, Pri Bertucci posou com a obra e postou fotos de autoras e autores que participaram da produção em sua conta @pribertucci_o_profeta_queer no Instagram.
“A linguagem neutra não visa nos dividir, muito pelo contrário. Ela surge com a objetivo de tornar a comunicação inclusiva para todas as pessoas, ou seja, incluir todo mundo, mulheres, homens e pessoas trans, sejam elas binárias ou não binárias. Então não é sobre separar ou colocar um grupo contra o outro.”
Pri Bertucci no Instagram
Pri Bertucci/Reprodução Instagram.
Apesar da polêmica sobre o uso de “todes” nos discursos oficiais do Governo Lula, a linguagem neutra não se resume a isso. O assunto é complexo, transversal e envolve conhecimentos de muitas áreas.
Na próxima semana, a segunda matéria da série Todos os Gêneros vai debater o uso de termos como “linguagem” “neutra” e “inclusiva”, por exemplo, que vêm sendo empregados equívoca e indiscriminadamente tanto por quem é favorável quanto por quem é contra a pauta.
Use a #FundacaoDebate ao divulgar a campanha nas suas redes sociais.
Caroline Cardoso – Comunicação FVHD, jornalista e doutora em Linguística
É permitida a reprodução, desde que citada a fonte.