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Mas o que é gênero, afinal? Parte 2

Entenda como o gênero gramatical das palavras reflete nossa visão do mundo

Para muitas pessoas, a divisão das palavras em femininas e masculinas está diretamente relacionada ao sexo e é perfeitamente “natural” que seja assim. Mas será?

Então, como explicar que dizemos menina para uma pessoa do sexo feminino; garoto para uma pessoa do sexo masculino e mesa, carro, fruta e queijo para objetos e alimentos? Eles também têm sexo?

Como sustentar essa hipótese se dizemos a chave em português e der Schlüssel (der é o artigo definido masculino o) em alemão e, nessa mesma língua, menina recebe artigo e sufixo neutro (das Mädchen) e nabo, artigo feminino (die Rübe)? Ou, ainda, se alma é substantivo feminino em português e masculino em espanhol?

Será que a suposta correspondência entre sexo e gênero gramatical é mesmo “natural”? Ou essa organização gramatical é um reflexo de nossa visão de mundo? É o que veremos nesta quinta e última matéria da série Todos os Gêneros.

O gênero gramatical

Várias línguas adotam um sistema de classificação das palavras quanto a gênero. Não importa se a palavra dá nome a um ser inanimado como janela, a um ser supostamente vivo como o robô ou a seres vivos como os rinocerontes.

O dicionário Caldas Aulete digital  registra o gênero como “categoria gramatical que classifica os nomes e pronomes de uma língua” e ressalta que pode ser classificado em masculino, feminino e neutro.

Mas nem toda língua é assim. Ter duas classes de gênero – feminino e masculino – não é um padrão universal nem uma característica intrínseca às línguas.

O português, como a maioria das línguas, adota um sistema binário de classificação do gênero gramatical das palavras em feminino e masculino. Em finlandês e no basco, não existe gênero gramatical. O alemão tem gênero neutro, além do feminino e do masculino. Algumas línguas africanas do grupo banto têm mais de dez gêneros gramaticais.

É bom ressaltar que o indo-europeu, língua hipoteticamente falada na Pré-História em um território que vai da Índia a Portugal e que deu origem ao grego e ao latim, organizava o gênero gramatical em animado (seres vivos independentemente do sexo) e inanimado (coisas sem vida).

O sumiço dessa herança gramatical nas línguas indo-europeias e a consequente diversidade com que as várias línguas categorizam o gênero são fortes evidências de como a língua reflete a sociedade e de como essa classificação também acaba influenciando nossa percepção do mundo.

O linguista francês Antoine Meillet (1866-1936) considerava inútil essa divisão, porque não podemos deduzir o gênero de uma palavra a partir da aparência ou das características de objetos ou sentimentos. E, se isso fosse possível, os dias da semana, por exemplo, não seriam femininos em português e masculinos em espanhol.

Se terça-feira fosse uma pessoa…

Se terça-feira fosse uma pessoa de origem espanhola, ela seria ele. É que, diferente do português, todos os dias da semana são considerados masculinos em espanhol.

Então, os dias de semana brasileiros são femininos e os dias de semana espanhóis são masculinos? Isso não faz o menor sentido, não é mesmo? E os exemplos não param por aí.

Certa vez, minha sobrinha mais velha, com uns cinco anos na época, me perguntou como ia se chamar meu filho quando eu tivesse um. Respondi que seria Átila e fui imediatamente repreendida por aquele pedacinho de gente: “Tia, Átila é nome de menina. Termina com a”.

Em uma palestra sobre gênero neutro no canal do Grupo de Estudos e Pesquisas em Fonologia (Gefono), o linguista e professor da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) Luiz Carlos Schwindt mostra algumas informações importantes.

Embora muita gente considere que há correspondência entre gênero gramatical e sexo, ela ocorre em apenas 5,6% dos nomes dicionarizados.

Se gênero gramatical e sexo fossem intrinsecamente influenciados, não haveria tanta diferença na classificação do gênero das palavras nas diversas línguas. A divisão gramatical do gênero em feminino e masculino não é “natural” nem tem relação com sexo. Ela é, antes de tudo, um reflexo de como enxergamos o mundo.

Luiz Carlos Schwindt

Crédito: Reprodução Facebook

O masculino genérico

Um ponto de divergência entre os linguistas é o chamado masculino genérico, entendido como o uso do gênero gramatical masculino para se referir a agrupamentos humanos, ainda que haja apenas uma pessoa do sexo masculino, como em português.

Expressões como “o homem é um mamífero”, “pequena parte dos brasileiros não acredita no vírus”, “Giovana e Bruno são casados” e “ninguém foi avisado da queda de energia” são exemplos desse uso.

Luiz Carlos Schwindt afirma que nem toda língua que relaciona gênero gramatical a sexo usa o masculino como genérico. E, em suas pesquisas sobre línguas iroquesas, o linguista britânico e professor da University of Surrey Greville Corbett (1947-) observou que, em algumas dessas línguas, o gênero gramatical feminino é utilizado para generalizar.

Outro achado de Greville Corbett é que a língua guajiro (aruaque), falada na Colômbia e na Venezuela, tem um gênero gramatical para indicar humanos masculinos e outro para todos os demais nomes, inclusive quando o sexo da pessoa é desconhecido.

Crédito: Reprodução site.

O português é uma língua sexista?

Embora essas informações trazidas por Schwindt e Corbett sejam muito importantes para a discussão sobre gênero neutro no português brasileiro, o feminino genérico é uma exceção. O masculino genérico predomina na maioria das línguas que consideram o masculino e o feminino como gêneros gramaticais.

Então, o português é uma língua sexista? Para a sociolinguista e professora da Universidade Federal de Sergipe (UFS) Raquel Freitag, esse uso do gênero gramatical masculino como genérico na língua portuguesa é um reflexo de nossa sociedade sexista.

Isso pode ser comprovado com exemplos de contextos em que o feminino é empregado genericamente no português em nomes de profissões consideradas femininas como empregada, diarista, babá, secretária, enfermeira.

Inclusive, nesses casos, os nomes femininos são usados para denotar genericamente os seres humanos que exercem tais profissões, reforçando estereótipos. A depender da profissão, observa-se também, refletida na língua, a relação assimétrica com que são consideradas as profissões.

Um exemplo bastante ilustrativo dessa assimetria entre homens e mulheres refletido na língua é citado por Guilherme Mäder, que estuda o masculino genérico no doutorado em linguística da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC).

Em um artigo publicado no site da IstoÉDinheiro em março de 2020, é possível perceber, logo na manchete “Enfermeiras e médicos, os ‘heróis’ da batalha contra o novo coronavírus”, o emprego do masculino genérico e do feminino genérico.

Guilherme Mäder chama a atenção para o fato de que, tal como foram usadas as generalizações, a categoria profissional para a qual se empregou o feminino genérico (enfermeiras) está em relação assimétrica de poder com a categoria para a qual se empregou o masculino genérico (médicos e heróis).

A generalização via gênero gramatical masculino é, então, um efeito do uso de tal categoria em contexto real de interação, além de altamente provida de significado social.

Raquel Freitag

Crédito: Reprodução Facebook.

“Uma língua não existe senão em uma sociedade. Se a sociedade é sexista, como o é a nossa, a língua apenas reflete esse sexismo”.

Raquel Freitag

Nem feminino, nem masculino

Inicialmente, em português, como forma de inclusão das pessoas que não se identificam com o binarismo de gênero, a arroba (@) começou a ser usada no lugar de a ou o finais em palavras como aluna e aluno, resultando na terceira opção alun@.

Isso aconteceu basicamente na escrita, já que é impossível pronunciar @ em lugar das vogais a e o do português. E esse é apenas um dos problemas do uso de arroba para marcar um suposto gênero gramatical neutro em português.

Então, a comunidade LGBTQIAPN+ defendeu o emprego de X para marcar o gênero gramatical neutro no lugar de a ou o em final de palavras. Em pouco tempo, começaram a se deparar com os mesmos problemas do uso de @.

A tão pretendida inclusão usada como justificativa para o emprego de @ e X para marcar gênero gramatical neutro não foi alcançada, pois não resolveu o problema nas interações orais nem foi tão inclusiva com outros grupos sociais invisibilizados como as pessoas com deficiência visual e as pessoas com dislexia.

Os softwares leitores para pessoas cegas, por exemplo, não conseguem, assim como qualquer falante de português, pronunciar @ e X no lugar das vogais e os disléxicos também não conseguem ler sílabas formadas com esses símbolos (nem os não disléxicos). Portanto, isso acabou gerando mais exclusão.

Movimento inclusivo e nada neutro

Algumas entidades, em especial aquelas ligadas aos movimentos sociais, têm se mostrado preocupadas em educar as pessoas para a diversidade de gênero e um uso linguístico o mais inclusivo possível.

O objetivo é orientar, não impor. Até mesmo porque uma mudança linguística “não pega” se a forma inovadora como determinada comunidade fala e escreve não for legitimada pela própria comunidade, pela sociedade, pelas gramáticas, pelos dicionários e pelas instituições.

Entre outras coisas, as pessoas que falam português estão sendo orientadas a usar ile como pronome pessoal e expressões genéricas como classe política e corpo docente em vez de políticos e professores, além de e no lugar de a e o no final de palavras como em amigues, alunes e todes.

Na língua inglesa, parte das pessoas não binárias usam os pronomes como zim/zir para se referir a si mesmas. Merriam-Webster nomeou they a palavra do ano em 2019 e o Oxford English Dictionary incorporou hir e zir ao vocabulário do inglês, refletindo o uso de pronomes de terceira pessoa como neutros em reação ao binarismo.

Em Hong Kong e na China continental, a comunidade transgênero de língua chinesa tem experimentado a introdução de pronomes não binários como alternativa aos pronomes específicos de gênero (ele) e (ela).

E, na Alemanha, há o caso de René_, uma pessoa que se identifica como não binária, não quer assumir a forma masculina de seu nome (René) nem a feminina (Renée), não quer ser referida como ele ou ela, não quer o pronome de gênero neutro em, optou por acrescentar um underline ao final de seu nome e passou a escrevê-lo intencionalmente com espaços entre os caracteres (R E N É_).

E o todes?

O uso de e em final de palavras para indicar o gênero gramatical neutro nos nomes em português brasileiro, como todes, amigues ou alunes, já é um fato linguístico, assumido conscientemente por muitos falantes, tanto na escrita quanto na fala.

Os cientistas da linguagem não são unânimes quanto ao assunto, mas consideram legítima toda e qualquer forma de se expressar pela língua. Também é importante frisar que ninguém está sendo obrigado a adotar a linguagem não binária. E, se adotá-la, não vai matar a gramática.

Boa parte das sociedades urbanas hoje estão lidando com essa transformação por que passa o conceito de gênero, porque é cada vez mais comum pessoas não binárias que ou se identificam com um gênero que combina masculino e feminino, ou experimentam um gênero que muda com o tempo, ou não se identificam com nenhum gênero.

E, como vimos nesta série, tudo isso está refletido na língua. Portanto, nossas escolhas linguísticas são essencialmente políticas e, à medida que nossa compreensão sobre gênero muda, a linguagem que usamos para simbolizar essa nova realidade também muda.

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 Caroline Cardoso – Comunicação FVHD, jornalista, doutora em Linguística

É permitida a reprodução, desde que citada a fonte.

 Fontes consultadas para a série Todos os Gêneros

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